O AgriFood XXI foi do prado ao prato, para ajudar o setor agroalimentar.
O campo é fértil. Três boas universidades, numa região onde o sector agroalimentar tem um peso relevante. Dezenas de investigadores envolvidos, da ecologia e da agronomia, da bio e microbiologia, da biotecnologia, da química que está na base de tudo, da nutrição, da saúde humana, da tecnologia alimentar. E de muitas áreas mais. Só percorrendo as centenas de artigos publicados é possível ter uma ideia global do alcance científico do projeto AgriFood XXI, das colaborações que suscitou e dos resultados conseguidos, que estão muito para além das oito patentes cujo registo foi pedido ou já concedido, com novos usos para subprodutos como o bagaço de azeitona, por exemplo.
Os subprodutos são já uma evolução das ciências agrárias que, com a colaboração de outras áreas do saber, estão, como o resto da Economia, a deixar de falar em resíduos, e a tentar transformar o que era, muitas vezes, um problema ambiental, numa oportunidade de acrescentar valor a um setor que enfrenta inúmeros desafios. Estes vão desde a sobre-exploração e empobrecimento dos solos a um sem fim de alterações ambientais – nas temperaturas, disponibilidade de água, biodiversidade, etc – provocadas pela ação humana no território e aceleradas pela crise climática que tem causas globais e acentuados efeitos locais, a exigir adaptação.
A urgência do tempo
Foi este o cenário, o da urgência deste nosso tempo, o dos impactos que este conjunto de crises pode ter num setor tão relevante para o Norte de Portugal, que se montou o AgriFood XII – Desenvolvimento e Consolidação da Investigação nos Setores Agrícolas e Alimentares do Norte de Portugal. Tal como a estratégia homónima europeia, a iniciativa tentou, literalmente, ir do prado ao prato, abordando de forma “holística”, como nota o investigador principal do projeto, Fernando Nunes, os desafios, mas também as oportunidades do setor. A iniciativa tocou em inúmeras produções, mas privilegiou a vinha e a sua transformação em vinho, a azeitona e o azeite, e os produtos hortofrutícolas, fileiras “de grande impacto económico na região”.
Com tantos problemas para enfrentar, os três parceiros, que integram o consórcio UNorte, dividiram tarefas, consoante as armas que tinham mais à mão, nos respetivos centros de investigação. A UTAD, líder do AgriFood XXI, focou-se na investigação da produção primária; a Universidade do Minho na tecnologia alimentar e a Universidade do Porto na economia circular e valorização de subprodutos. Mas as equipas dos projetos refletem um cruzamento de saberes e a eliminação de fronteiras institucionais, que já vinham sendo derrubadas noutras iniciativas. “Esta acabou por ser uma oportunidade muito grande para se trabalhar em equipa nas diferentes vertentes”, afirma Fernando Nunes.
Produtores cooperaram
E não foi apenas dentro das universidades que esse espírito de colaboração vingou. No terreno, onde é possível testar, numa escala alargada, as soluções investigadas em ambiente laboratorial, ou em pequenos ensaios de campo, os proprietários, preocupados com o futuro das suas culturas, mostram-se cada vez mais abertos a acolher os cientistas. “A disponibilidade foi fantástica. Eu acho que os próprios produtores já começaram a perceber que é importante fazer investigação, porque o objetivo é, realmente, ajudá-los. Eles são os tomadores finais do conhecimento que produzimos”, insiste o professor da UTAD.
Os produtores não eram beneficiários diretos dos 2,4 milhões de euros investidos nesta iniciativa apoiada pelo Norte 2020 e direcionada para o sistema científico, mas contribuíram com muitas horas de trabalho voluntário, nas tarefas de campo que foi necessário levar a cabo, explica Fernando Nunes. Em contrapartida, várias das soluções desenvolvidas durante o Agrifood XXI ganharam a maturidade suficiente para se tornarem opções comercialmente viáveis, e é com orgulho que os investigadores veem o seu trabalho dar frutos – ou ajudar as plantas a dar melhores frutos, como aconteceu, por exemplo, com Lia Dinis.
Um protetor solar para a vinha
A investigadora do departamento de agronomia da UTAD, explica que o projeto AgriFood XXI foi “muito importante” para a sua investigação na cultura da vinha, pois permitiu-lhe estudar estratégias para minimizar os efeitos negativos das alterações climáticas, nomeadamente os efeitos das ondas de calor, por exemplo. Com recurso a uma “molécula inerte”, a do caulino, “que não interfere no metabolismo da planta”, ela desenvolveu um protetor solar para as folhas das videiras, que tal como nós, são muito suscetíveis a apanhar um escaldão.
Revestidas com esta argila esbranquiçada, que pode ser diluída e aplicada por aspersão, com ajuda de um trator, ou mesmo por uma pessoa a pé, as folhas das videiras conseguem refletir parte da radiação solar, o que diminui em vários graus a temperatura a que estão sujeitas. Dessa forma, a transpiração (perda de água), diminui, o que evita o conhecido fenómeno de dessecamento da folha e do fruto, nestes dias tórridos cada vez mais frequentes. E, graças a este protetor solar, a videira pode, assim, concentrar-se noutras tarefas mais importantes para a qualidade da uva e, consequentemente, do vinho, como a produção de compostos fenólicos, que aumentam a sua capacidade antioxidante, frisa a investigadora.
Esta espécie de “protetor solar fator 50” está a ser adotado no Douro, região que, se já era conhecida por ser seca e quente, enfrenta, no que aos picos de temperatura diz respeito, desafios ainda maiores. Mas tem uma utilidade evidente noutras zonas viníferas do país, como o Alentejo, e noutras culturas, em Portugal e não só. Durante o projeto, numa entrevista à TVI, Lia Dinis revelava ter tido contactos do Brasil, onde havia interesse em testar esta solução na cultura do cacau. E se o caulino ajudar a salvar o principal ingrediente do chocolate…
Um Spa da cabeça aos pés
Como quem leva um spa à vinha, a equipa de Lia Dinis trabalhou ainda a possibilidade de usar o silício – o segundo elemento mais abundantemente na crosta terrestre – como um bioestimulante. “Ao pulverizar o silício, o que é que acontece? Parte deste elemento entra na folha e forma uma camada de sílica. Esta vai evitar as perdas excessivas de água. Quando a planta percebe que tem excesso de calor e de radiação, essa camada vai proteger a folha da perda excessiva de água, além de também ser uma barreira para a picagem de insetos”, detalha. Ao providenciar este conforto à planta, o tratamento melhora a qualidade da uva e, consequentemente, do vinho, garante.
Para além dos fatores ambientais que foram alvo do trabalho de Lia Dinis e de outros investigadores, a qualidade do solo foi outra das áreas a merecer atenção no Agrifood XXI. Sandra Martins participou num projeto que explorou formas de melhorar a cultura do olival mediterrânico de sequeiro, muito afetada por fenómenos como a erosão e a degradação da qualidade do solo, quer por causa da crise climática, quer por práticas culturais que, por via do excesso de mobilização de terras, por exemplo, se tornam, também elas, fontes de emissão de CO2.
Comparar práticas culturais
Na prática, Sandra Martins e outros investigadores fizeram experiências com a cobertura de terrenos em olivais com plantas leguminosas, que, para além de aumentarem a biodiversidade, têm outros benefícios conhecidos, pois fixam CO2, aportam nitrogénio e ajudam a evitar a erosão, por exemplo. Experimentaram também a sinergia destas coberturas com biochar, material feito a partir de biomassa de origem vegetal, e zeólitos, minerais porosos, que, num caso e noutro, têm efeitos específicos, mas partilham essa função comum de ajudar a reter água e nutrientes e a enriquecer o microbioma do solo, beneficiando as oliveiras.
Os resultados foram comparados com os de culturas submetidas a práticas tradicionais, acrescenta Sandra Martins, que assinou, com outros investigadores, um artigo sobre esta pesquisa. E o que ela demonstrou foi que as práticas sustentáveis promoveram um aumento geral na qualidade do solo e na capacidade fotossintética das plantas. Verificou-se também um aumento significativo na melhoria da composição dos frutos e do azeite, garante. Por outro lado, nota, observou-se o oposto na qualidade do azeite obtido através das práticas convencionais.
A cooperação, outro fruto
Fernando Nunes expressa grande satisfação com os resultados alcançados, mencionando que, para além dos casos aqui exemplificados, muitos outros já estão a ser aplicados em contexto de produção. O também diretor do Centro de Química de Vila Real, da UTAD, destacou o exemplo da reutilização de subprodutos, como o bagaço da azeitona, para a produção de compostos bioativos para cosméticos, um dos campos de pesquisa que deu origem a patentes, com empresas já interessadas na sua comercialização. E olhando para a lista de artigos publicados no âmbito do projeto, percebe-se que há linhas de pesquisa promissoras, de que um destes dias ouviremos falar.
Esta iniciativa terminou em 2023, mas ao alimentar uma colaboração em maior escala no sistema científico das três universidades públicas do Norte do país, cimentou relações entre investigadores que se prolongaram no tempo. Segundo Fernando Nunes, nos anos mais recentes foram submetidas novas candidaturas de projetos europeus que integram membros das equipas formadas no AgriFood XXI e, além disso, estas têm submetido projetos a avisos subsequentes da CCDRN. Para o investigador da UTAD, esta colaboração interinstitucional, e muitas vezes multidisciplinar, “é fundamental para resolver problemas de forma mais eficaz e com maior motivação”.