Atlântida, uma janela aberta para o futuro, a partir do mar
Não sabemos se na mítica cidade de Atlântida havia uma biblioteca. O que sabemos, hoje, é que o mar, para além de ser rico em substâncias mitológicas, guarda tesouros outros, um conhecimento perscrutável na vida marinha, das grandes baleias às mais ínfimas bactérias, com as quais podemos aprender a combater uma doença, ou a produzir tintas para barcos que não destruam a diversidade marinha, por exemplo. É isso, e muito, muito mais, que três universidades do Norte do país estão a fazer na plataforma Atlântida, lideradas pelo Ciimar – o Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental.
Houve um tempo em que o mar se queria longe. Tirando as comunidades de pescadores, que dele se abeiravam a medo, para pescar, poucos procuravam a proximidade a um lugar conotado com o desconhecido, perigoso pela sua sua fúria invernal e pelas hordas de piratas que arrojava à praia, que ainda por cima era um antro de seres medonhos, que o nosso
fértil imaginário, influenciado pelo dos marinheiros que conseguiam sobreviver às agruras daquele meio, criava.
Hoje já não é assim, basta ver o preço do metro quadrado junto a qualquer praia. Mas a humanidade continua a saber muito pouco sobre este meio primordial e dominante – o planeta chama-se Terra mas a sua superfície é 70% coberta por oceanos, nos quais se concentra 97% da água. Três quartos desta imensidão não foram sequer mapeados, e os seus fundos são mais misteriosos, para nós, do que a superfície lunar. Um paradoxo?
O Atlântida
Com um braço marinheiro, o Ciimar, Instalado no Porto de Leixões, a dois passos dessa biblioteca imensa, de livros quase todos por abrir, a Universidade do Porto juntou forças às Universidades do Minho e de Trás-os-Montes e Alto Douro e avançou rumo a Atlântida. Que neste caso não é a cidade mítica, perdida algures no meio do oceano, mas um projecto ambicioso: uma plataforma de conhecimento sobre a costa norte de Portugal, envolvendo 250 investigadores e várias linhas de pesquisa.
“Nós com este projecto quisemos demonstrar que a Região Norte tem uma imensidão de recursos, não apenas biológicos, mas essencialmente humanos”, afirma o coordenador do Atlântida e director do Ciimar, Vítor Vasconcelos. Segundo este biólogo marinho, a plataforma visa colocar esse potencial humano ao serviço de um objectivo: criar instrumentos que permitam estudar e monitorizar o ambiente costeiro e o mar profundo da região do ponto de vista químico e biológico, abarcando ainda o vento e as ondas, cujo conhecimento é essencial, por exemplo, para o sector energético.
Um dos objetivos da plataforma é fornecer dados às autoridades locais, nacionais e internacionais para gerir a região Norte de forma a compatibilizar vários usos, como a pesca, as energias renováveis, a aquacultura, a biotecnologia marinha e o turismo costeiro. A plataforma,
explica o coordenador, integra dados e informações relevantes para que se possam tomar decisões sobre estas e outras atividades, com melhor conhecimento do respectivo impacto no ecossistema marinho.
A importância dos biobancos
O Atlântida permitiu potenciar linhas de investigação já estruturadas nas três universidades, e gerou sete patentes, mais três que as previstas na proposta de financiamento do projeto. Neste “navio”, havia gente a estudar de tudo, desde os grandes cetáceos aos mais ínfimos seres vivos. E ao mesmo tempo que destaca o potencial económico da iniciativa, que deu origem a novos negócios, dedicados à cosmética a partir das macroalgas, num caso, e de microalgas e cianobactérias, o professor catedrático da Faculdade de Ciências olha com muito carinho para outro dos objetivos, mais básico mas não menos importante, desta iniciativa.
Enquanto biólogo marinho responsável pelas primeiras colecções de cianobactérias existentes no país, Vítor Vasconcelos mostra orgulho nos novos biobancos de seres microscópicos que foram criados no Atlântida, um deles já com 1500 amostras de bactérias heterotróficas, que são alimentadas e cuidadas por Raquel Silva. Guardadas no Ciimar, estas colónias vivas estão identificadas e sabemos de onde vieram, conhecimento de grande utilidade se pensarmos que ali, por exemplo, há bactérias capazes de degradar hidrocarbonetos, e que rapidamente podem ser recolhidas e multiplicadas, para nos ajudar a combater um derrame de petróleo.
Há décadas que Vítor Vasconcelos se interessa pelo funcionamento da vida à escala dos microorganismos. Desde sempre, trabalhou com cianobactérias, microalgas procarióticas responsáveis, hoje em dia, pela produção de cerca de 50% do oxigénio no mar. “Temos uma atmosfera rica em oxigénio devido a estes organismos que já existem há mais de 3,5 milhões de anos. E eu estou interessado nelas porque elas, além disso,
produzem também umas moléculas tóxicas que podem causar eventualmente até a morte dos organismos que vivem na água e eventualmente de seres humanos”.
Bactérias que salvam vidas…
Este lado tóxico e letal das cianobactérias interessou-o nos primeiros anos, mas o diretor do Ciimar já apontou o rumo para outros interesses. “Se por um lado elas podem matar-nos, por outro lado podem também nos salvar. Podemos produzir novos antibióticos, novas moléculas com interesse farmacológico, na luta contra o cancro, contra a obesidade e contra determinado tipo de infecções, até da pele”, descreve.
A isto, o biólogo marinho acrescenta o potencial de aplicações em cosmética, na agricultura e numa miríade de outras áreas da biotecnologia. Várias delas estão em exploração neste centro de investigação instalado no molhe sul de Leixões ou em spin offs incubadas na UPTec Mar, num edifício na margem de Leça do porto comercial. E o Atlântida foi uma alavanca importante para muitos desses projetos.
A biorremediação em caso de desastres ambientais de vários tipos, em terra ou no mar, é um campo em crescendo, neste tempo em que nos voltamos para a natureza tentando encontrar nela alternativas para a salvar dos estragos que nós próprios provocamos. Mas nos biobancos do Ciimar há muitas outras bactérias das quais pouco ou nada se sabe, e cujo estudo pode vir a revelar-se promissor, para múltiplas áreas de aplicação. E não falta, entre os 650 investigadores que aqui trabalham, quem ande de olho no potencial deste material vivo, muito dele recolhido numa das praias da região.
O grupo do alemão Ralph Urbatzka chama-se “Biodiscovery for Health”, o que já diz muito sobre o que procuram em bactérias, cianobactérias, actinobactérias, nas micro e macroalgas, em esponjas e fungos. Tentam descobrir novas aplicações de organismos marinhos para o tratamento de
doenças humanas, concentrando atenções em doenças metabólicas, como obesidade, diabetes e outras patologias crónicas que afectam cada vez mais pessoas.
Por aqui já se descobriram vários usos promissores, no campo da obesidade, por exemplo, e é provável que, brevemente, venhamos a ouvir falar deles. Os projetos de investigação, como o Atlântida, servem como base para futuras pesquisas, mas o processo de investigação e desenvolvimento de medicamentos é longo e, para chegar a bom porto, nota o investigador, é preciso garantir a continuidade do financiamento.
… Outras que salvam o meio meio-marinho
O apelo é secundado por outra investigadora, Joana Almeida, que noutro espaço do Ciimar trabalha numa linha de investigação relacionada com aplicações biotecnológicas de produtos naturais. Satisfeita com o aumento significativo no número e na diversidade de recursos biológicos das coleções deste centro de investigação, Joana está a trabalhar no desenvolvimento de tintas que permitam substituir as substâncias químicas com propriedades anti-incrustantes usadas na pintura dos cascos de navio.
A bioincrustação, tanto de micro-organismos, como de plantas aquáticas, invertebrados, crustáceos e muitos outros seres marinhos, é um problema económico, pois obriga a constantes manutenções no casco de navios e de infraestruturas submersas. Mas também tem consequências ecológicas, ao transportar por todo o globo formas de vida que, muitas vezes, se instalam e multiplicam em habitats a que eram estranhas, competindo com espécies nativas dessas áreas. Algas invasoras como o Sargassum muticum, originário do japão, instalaram-se há décadas na costa europeia, incluindo a portuguesa, por esta via.
O problema é que apesar da evolução tecnológica, as tintas hoje utilizadas para proteger embarcações e infra-estruturas submersas são altamente
poluentes e tóxicas para os organismos marinhos. Impulsionados pelas motivações ambientais, e por um quadro regulamentar europeu que exige a redução do uso de cobre nas tintas, Joana Almeida e a sua equipa procuram assim compostos produzidos por cianobactérias que possam ter potencial bioativo para criar revestimentos com base natural.
A continuidade é fundamental
Algumas pesquisas acabam por não redundar no que esperavam descobrir, mas o conhecimento produzido e partilhado sobre a constituição, o comportamento e o metabolismo destes seres vivos, ou sobre a forma como interagem com o ambiente marinho, esse fica, e pode servir a outras linhas de investigação desta e de outras instituições portuguesas e internacionais. E o Atlântida é, nesse sentido, um repositório e, ao mesmo tempo, uma janela aberta para descobertas que nem sequer imaginamos.
Concluído, com muito sucesso, o programa de trabalhos previsto na candidatura ao Norte 2020, e criado, entretanto, o Ciimar Watch, que mantém vários pontos de observação na região, o mesmo consórcio das três universidades do Norte de Portugal já se candidatou a um novo apoio no programa regional em curso, o Norte 2030. O consórcio quer prosseguir este trabalho de monitorização da costa e enriquecer as bases de dados destas instituições, evitando que “como acontece em muitos outros projectos, que depois de três ou quatro anos também este este morresse”, frisa Vítor Vasconcelos.
Segundo este biólogo, a descontinuidade no financiamento do sistema científico português resulta em perdas para o país, que não tem sido capaz de produzir séries longas de dados sobre múltiplos parâmetros. O conhecimento de algo aparentemente simples como a evolução da temperatura das águas, na nossa costa, é fundamental para a compreensão da expressão local de fenómenos globais que afetam, por
exemplo, a pesca ou a aquicultura, e para a tomada de decisões sobre o futuro desta e de outras áreas. Daí a importância de manter a janela aberta para a Atlântida, e para o tanto que o mar ainda tem para nos ensinar.