A investigação científica ao serviço do doente
Há cerca de dez anos, Rui Henrique, médico e investigador no Instituto Português de Oncologia do Porto (IPO Porto), e Raquel Seruca, investigadora no Ipatimup (uma das instituições que veio a dar origem ao I3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde), participaram ativamente no desenho do plano para criar, no Porto, uma estrutura de investigação de referência na área do cancro. Desde o início, o desafio lançado pelo impulsionador deste processo, o então presidente do Conselho de Administração, Dr. Laranja Pontes, teve definida uma linha basilar: colocar o doente e as suas necessidades no centro de toda a atenção, subalternizando as exigências dos investigadores, fossem elas científicas, económicas ou académicas. Foi pensada uma estrutura capaz de oferecer algo inovador aos doentes: formas de prevenir a doença, tratá-la, curá-la ou reduzir o seu impacto. Essa inovação deveria assentar nas competências já existentes nas duas instituições que formavam o consórcio.
Colocar a investigação ao serviço do doente oncológico significava, como simplifica Rui Henrique, “sermos mais eficazes, proporcionar maior probabilidade de cura ou de um tratamento mais eficaz e, simultaneamente, reduzir o impacto negativo que todas as terapêuticas têm em cada doente”.
O plano concretizou-se com a assinatura do acordo de parceria que deu origem ao primeiro, e até agora único, Centro Compreensivo do Cancro em Portugal, inspirado em modelos internacionais. O Porto.CCC – Porto Comprehensive Cancer Centre foi fundado em 2016. “A ideia era construirmos uma estrutura onde a investigação, a formação, o ensino e o cuidado ao doente se fundissem numa unidade coesa, em que todos estes elementos se complementam mutuamente”, explica Rui Henrique.
Desde a constituição do consórcio, muita coisa aconteceu, inclusive com dois mentores do projeto. Rui Henrique foi nomeado presidente do Conselho de Administração do IPO Porto entre 2019 e 2022. Raquel Seruca faleceu, vítima de
cancro. No entanto, a estratégia delineada manteve-se firme e continua a ser executada com determinação. Não se fala do melhor dos ritmos, porque estamos a falar de cancro, e esta batalha tem de ser travada em diversas frentes. Não é por acaso que a oncologia absorve 25% do investimento global em Investigação e Desenvolvimento na área do medicamento.
Rui Henrique não tem dúvidas de que o financiamento público, no âmbito do Sistema de Apoio à Investigação Científica e Tecnológica, em que o Norte2020 atribuiu fundos do FEDER, foi determinante para a concretização dos objetivos. O projeto científico colaborativo TeamUp4Cancer, desenvolvido ao longo de dois anos por grupos de investigação do IPO e do Ipatimup, garantiu um financiamento de 17 milhões de euros. Esse montante permitiu, entre outras coisas, a aquisição de equipamentos de ponta para diagnóstico e tratamento, bem como a contratação de recursos humanos fundamentais para avanços em diversas áreas.
Por exemplo, foi possível identificar e estratificar o risco dos doentes, selecionar aqueles que melhor respondem a determinadas terapêuticas e caracterizar em profundidade os tumores para encontrar novos alvos moleculares. Tudo isto permitiu avançar na busca de novos fármacos e testar a sua eficácia em doentes, sintetiza Rui Henrique.
Grande parte destes avanços está a ser integrada na prática clínica, mas ainda requer um período de maturação e investigação para garantir a melhor aplicação aos doentes.
Outro objetivo importante do projeto de financiamento foi a criação e execução de um ensaio clínico concebido por um investigador, algo inovador à época em Portugal. Por coincidência (ou não), o investigador responsável por esse primeiro ensaio é atualmente Presidente do Conselho de Administração do IPO-Porto, Júlio Oliveira. Este ensaio, focalizado no cancro do pulmão, procura comprovar os benefícios das combinações de terapêuticas, incluindo radioterapia, quimioterapia e imunoterapia.
Cerca de 30% dos cancros pulmonares proliferam devido a uma alteração genética específica. Se a equipa de investigação conseguir bloquear essa alteração com um medicamento direcionado, será possível controlar ou travar o tumor, e, em alguns casos, até mesmo reduzi-lo. “Não conseguimos curar, mas conseguimos travar a doença e ganhar tempo de vida. E nesse intervalo, surgem novas moléculas que poderão ser úteis para controlar a doença”, explica Júlio Oliveira.
“Este é claramente um domínio onde os nossos doentes beneficiaram diretamente, pois estavam a ser exploradas fronteiras até então desconhecidas. Hoje, começam a surgir evidências robustas, mas, na altura em que o projeto foi concebido, não havia nenhuma. Os doentes incluídos neste ensaio foram os primeiros a beneficiar de uma ideia baseada em evidência, mas que ainda não era uma prática consolidada”, destaca Júlio Oliveira.
Atualmente, um número crescente de doentes oncológicos pode ver a sua doença tornar-se crónica, e, em alguns casos, até mesmo ser curada, especialmente se o
diagnóstico for precoce. No entanto, ainda existe uma percentagem significativa de doentes que apresentam doença mais avançada, onde a intervenção terapêutica tem como principal objetivo o controlo, e não a cura. Nestas situações, a investigação torna-se imperativa, pois é a única forma de descobrir novas terapias, aumentar a sobrevivência dos doentes e melhorar a sua qualidade de vida.
Da bancada de investigação para a cabeceira da cama
A lógica de funcionamento do consórcio, agora batizado P.CCC – Porto Comprehensive Cancer Center Raquel Seruca, em homenagem à sua fundadora, pode ser compreendida no conceito From Bedside to Bench and Back. Bedside refere-se ao contacto diário que os médicos do IPO Porto têm com as necessidades reais dos doentes oncológicos. Essas necessidades motivam o desenvolvimento de investigações pelas duas instituições do consórcio (Bench), com o objetivo de encontrar soluções sob a forma de ensaios clínicos que, por sua vez, pretendem melhorar os cuidados prestados com a descoberta de tratamentos inovadores. Volta-se assim ao doente (Back), que passa a integrar os ensaios clínicos desenvolvidos no Porto.CCC.
A forma como este conceito é posto em prática e como se integra na lógica de funcionamento do IPO – pioneiro na criação das chamadas “clínicas de patologia”, com separação física por áreas de especialização – levou à preparação de um espaço físico dedicado. Todos os doentes que participam em ensaios clínicos no IPO Porto são encaminhados para o CITO – Centro de Inovação Terapêutica em Oncologia, uma área de 1250 metros quadrados que compreende todo o ecossistema do doente em ensaio clínico. Dispõe de uma área de internamento, consultas e reuniões, mas é, sobretudo, um espaço assistencial para os doentes que seguem protocolos de investigação clínica.
Como Rita Barbosa, 80 anos, diagnosticada com cancro da pele. Após receber o diagnóstico, aceitou integrar um ensaio clínico liderado pelo IPO. Desloca-se frequentemente ao IPO, quase sempre acompanhada pela filha, e só tem “coisas muito boas a dizer de toda a gente”. “Tenho-me sentido muito bem, sou muito bem tratada, são todos muito carinhosos comigo. Acho que até estou melhor agora, depois dos tratamentos, do que antes. No início ficava muito frustrada, deprimida, sem ação nos primeiros dias. Agora não. Os últimos dois tratamentos até correram muito bem. E se tenho algum problema, é só falar com a médica. Desfazem-se em atenções para me ajudar. Quando lhe contei que tinha virado a cabeça e ficado com tonturas, pediu logo um eletroencefalograma. Sinto-me mesmo muito acompanhada”, relata a paciente.
Sem se referir a nenhum caso em particular, Júlio Oliveira destaca que os doentes incluídos em ensaios clínicos enfrentam uma logística mais exigente. “Têm de fazer mais análises por questões de segurança, ter mais consultas, realizar mais exames. Os tratamentos são habitualmente mais demorados e há um conjunto de procedimentos de segurança que fazem com que o doente passe mais tempo no hospital. A
prioridade do ensaio clínico é criar as condições para que o doente não tenha risco agravado pelo facto de estar a receber um medicamento experimental. Pretende-se gerar o máximo benefício do tratamento com o menor risco possível”, explica Júlio Oliveira.
Se a criação de condições físicas é importante para os doentes, a criação de condições organizacionais é essencial para captar e reter profissionais, sublinha o presidente do IPO. Por fim – e num terceiro lugar que poderia ser o primeiro – destaca-se o contributo deste tipo de investimento para a sustentabilidade do sistema de saúde.
“O aumento anual dos custos com medicamentos ultrapassa os 10%. Na oncologia, essa subida é ainda maior, tornando insustentável a equação a longo prazo. O setor da saúde é, infelizmente, visto exclusivamente como despesa, quando é uma área essencial ao desenvolvimento económico”, alerta o presidente do IPO. Por isso, outros países e instituições hospitalares apostam fortemente na investigação clínica. Um dos exemplos citados por Júlio Oliveira é o Hospital Vall d’Hebron, possivelmente o centro hospitalar que mais doentes inclui em ensaios oncológicos – só em 2023, cerca de mil doentes participaram em estudos.
O IPO Porto tem cerca de um quinto desse número, mas tem um objetivo claro e assumido: nos próximos dois ou três anos, pretende duplicar o número de doentes inseridos em ensaios clínicos.
Medicina de precisão
Há uma percentagem cada vez maior de doentes com cancro em que se consegue tornar a doença tendencialmente crónica e, em alguns casos, até alcançar a cura – principalmente se for diagnosticada numa fase precoce. Porém, ainda há uma percentagem significativa de doentes que acabam por desenvolver doença metastática, onde a intervenção terapêutica já não tem intenção curativa, mas sim de controlo. Numa doença com estas características, a investigação tem de ser palavra de ordem, pois só assim é possível encontrar novas abordagens terapêuticas, aumentar a sobrevivência dos doentes e contribuir para uma melhoria da qualidade de vida.
Se considerarmos que grande parte do investimento global em I&D na área do medicamento se destina à oncologia, é importante notar que 80% desse investimento é feito essencialmente em ensaios clínicos de fase precoce – ou seja, de fase 1 ou fase 2, quando a tecnologia está a sair do laboratório e entra na experimentação em seres humanos. Em Portugal, no entanto, 95% dos ensaios clínicos são de fase 3, havendo poucos estudos nas fases 1 e 2. “Portanto, há aqui uma dissociação entre as oportunidades existentes e aquilo que realmente estamos a aproveitar enquanto país”, considera Júlio Oliveira, destacando o trabalho do TeamUp4Cancer como um passo importante para reduzir essa lacuna.
O IPO Porto implementou, na prática, um programa de Oncologia de Precisão. Em 2019, criou a unidade de ensaios clínicos de fase precoce, que agora tem a sua sede no CITO. Desde 2021, passou a oferecer, em contexto de estudo clínico, a
sequenciação genómica aos doentes do IPO Porto, para avaliar se, após esgotadas todas as opções de tratamento convencionais, ainda seria possível oferecer alguma alternativa, com carácter ainda experimental, direcionada às características específicas do tumor.
De acordo com Júlio Oliveira, cerca de 700 doentes já beneficiaram da inclusão para este programa de oncologia de precisão e o objetivo é, “num futuro muito próximo”, expandir a oferta deste programa a todos os doentes oncológicos da região Norte. O IPO pretende ser o catalisador destes desafios, atraindo empresas, a atenção da academia e investidores nacionais e internacionais, com o intuito de criar uma área de desenvolvimento económico centrada no Porto, mas que beneficie toda a região e o país.
Júlio Oliveira sublinha que a ambição é expandir aquilo que já foi iniciado e, a partir da base existente, avançar para novas linhas de ação. Entre essas estratégias está a produção, dentro do próprio IPO Porto, de tecnologias inovadoras na área dos medicamentos, como as chamadas CAR-T Cells – um tratamento que utiliza células do sistema imunitário do paciente, manipuladas geneticamente para combater as células tumorais. Outra aposta será o desenvolvimento de radiofármacos na área da medicina nuclear, permitindo combater um tumor no mesmo ato médico em que está a ser diagnosticado.
“Estamos a falar de áreas de extrema complexidade logística, que apenas centros altamente preparados, com infraestrutura adequada, equipamentos e, sobretudo, equipas médicas altamente especializadas, podem assumir”, explica o presidente do IPO Porto. Com essa estrutura consolidada, a instituição pretende tornar-se um polo agregador e um motor de desenvolvimento, atraindo empresas, instituições académicas e investidores para criar, “de uma vez por todas, uma área de desenvolvimento económico na região Norte do país, centrada no Porto e no IPO, beneficiando toda a região e o país.” Sem nunca deixar de colocar o doente, e as necessidades do doente, no centro de todas as decisões.