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Ferreirim

Em Ferreirim, no concelho de Sernancelhe, um Conservatório de Música oferece ensino de qualidade e forma músicos talentosos, revelando o potencial do interior.

Ferreirim

Em Ferreirim, no concelho de Sernancelhe, um Conservatório de Música oferece ensino de qualidade e forma músicos talentosos, revelando o potencial do interior.

O Valeroso Milagre de uma aldeia com um conservatório de música  

Filipa Coimbra tem apenas 12 anos, mas muita maturidade. Naquela tarde de Maio em que estava atrás de tarimbas e bombos, no interior do Panteão Nacional, prestes a interpretar a peça “Valeroso Milagre”, do compositor espanhol Andrés Alvarez, na cerimónia de encerramento dos 60 anos da morte de Aquilino Ribeiro, sabe que estava imensamente feliz. “Muito stressada e nervosa. Mas imensamente feliz. Foi muito emocionante”. Era o peso da responsabilidade e o rubro do orgulho.  

Filipa estava com a Orquestra da Conservatório Regional de Música de Ferreirim, a escola de música que frequentou metade da sua ainda curta existência. Esteve indecisa entre flauta transversal e percussão, mas a variedade de instrumentos naquele naipe levou a melhor. Escolheu percussão, adora lâminas, bombos, tarimbas. Tem aulas de instrumento, aulas de grupo, aulas de orquestra.  

“Eu quando estou a tocar, esqueço tudo, foco-me na música, na que eu faço e na que os meus colegas fazem. Acho que é uma maneira de esquecer o que está à nossa volta e de nos focarmos só no que nós gostamos – que no meu caso é a música”, explica, entusiasmada.  

A peça “Valeroso Milagre” foi escrita com base num conto homónimo de Aquilino Ribeiro, autor que tal como Filipa nasceu em Sernancelhe e cuja notoriedade da obra literária lhe fez merecer as honras de ser sepultado no Panteão Nacional. “É sempre emocionante sabermos que estamos a tocar algo que diz respeito à terra onde nascemos”, sublinha Filipa. 

Ferreirim é uma aldeia do concelho de Sernancelhe, e hoje a antiga escola primária da aldeia é sede de um Conservatório de Música cuja qualidade musical dos seus alunos já os levou a apresentações em salas emblemáticas como aquela do Panteão, em Lisboa, ou uma outra na Casa da Música, no Porto. Também foi o Conservatório que teve a responsabilidade de fechar a programação do evento Douro Cidade Europeia do Vinho 2023, que se realizou em Vila Real.  

“Nós sentimos o peso da responsabilidade, mas também alguma vaidade por termos estes desafios e oportunidades tão bonitas. Eu cresci muito a aprender a peça Valeroso Milagre. Agora espero continuar a crescer com todos os desafios que nos aparecem pela frente”, vaticina. Nessa luminosa manhã de sábado que passou em aulas dentro do antigo edifício da escola primária, esteve a aprender a tocar a peça The Ghost Ship, de José Alberto Pina.   

Somatório de acasos e estratégias 

A escola primária de Ferreirim havia fechado há anos, por falta de alunos. No município de Sernancelhe até nem ensino secundário havia – uma situação que se reverteu neste ano lectivo 2024/2025. A inusitada existência de um Conservatório de Música numa aldeia encravada no Douro profundo é um somatório de teimosias, acasos felizes e de generosidade e talento. “E de estratégia”, acrescenta Artur Costa, um dos dois músicos que asseguram a direcção pedagógica do Conservatório. Artur Costa já foi músico, já foi professor de instrumento, já foi maestro da Banda Musical Oitenta e Um de Ferreirim, a instituição precursora deste conservatório e que permitiu a sua existência. Foi quando esta instituição adquiriu o Estatuto de Utilidade Publica, e a DGEST o certificou como entidade de ensino, que o projeto do Conservatório pode finalmente descolar. Estávamos, então, em 2015.  

Artur Costa conhece bem os problemas da interioridade. Ele próprio nasceu e cresceu numa aldeia de um concelho vizinho, onde também havia uma banda filarmónica – a Banda de Salzedas, em Tarouca. Entrou para a banda aos oito anos, apaixonou-se pelo clarinete, não quis outro curso superior que não a música. Mas o facto de não haver ensino articulado, e ter de andar a saltar entre Porto e Viseu, levou a que um ano chumbasse mesmo por faltas. “Sei bem as vantagens que pode haver pelo facto de estudar música na nossa região. E depois dá-me um prazer particular em ter esta escola aqui, porque tanto eu como o actual maestro, chegamos a ouvir comentários, quando andávamos no Porto, de que atrás do Marão não havia música. Há pois”. 

Regionalismos à parte – na verdade, há algo de Aquilino Ribeiro em todos os que vivem nestas Terras do Demo – a verdade é que Artur Costa é director pedagógico de uma estrutura que já tem a seu cargo a educação musical de quase 500 alunos. Para além das aulas da Orquestra do Conservatório, assegura a Iniciação Musical, o Curso Básico em regime articulado e supletivo, o Curso Secundário em regime articulado e supletivo, e Cursos Livres nos concelhos de Sernancelhe, Penalva do Castelo e Aguiar da Beira. 

É uma expansão notável se pensarmos que quando foi fundado, há dez anos, o Conservatório Regional de Música de Ferreirim arrancou com apenas 33 alunos. Na verdade, exactamente com todos os alunos que estavam matriculados no 5º ano de escolaridade e passaram a ter iniciação musical no âmbito das suas Actividades de Enriquecimento Curricular (AEC). Depois, o ensino articulado chegou aos outros dois municípios, e a excelente articulação entre a Banda Oitenta e Um de Ferreirim, os agrupamentos de escolas e os municípios permite que os alunos do ensino articulado tenham mesmo as aulas de música dentro do normal horário escolar, das 9h00 às 17h00. “E não são muitos conservatórios que se podem orgulhar disso”, refere o director. 

A estratégia a que se refere Artur Costa deve ser atribuída a Carlos Santos, antigo vereador e actual presidente da Câmara de Sernancelhe (depois do presidente Carlos Silva Santiago ter sido eleito deputado na Assembleia da República). Carlos Santos é ele próprio um músico: foi instrumentista de saxofone por 13 anos, maestro por seis, e presidente da direcção da Banda por mais de 15 anos. “O sonho existia há muito. O nosso empenho foi conseguir juntar as pessoas certas para a componente pedagógica da escola”, admite o autarca. E sensibilizar outras entidades para a bondade do projeto. 

E nisso encontraram entusiasmo por parte do Agrupamento de Escolas Padre João Rodrigues, de Sernancelhe, que incluiu o ensino de música nas Actividades de Enriquecimento Curricular (AEC) do Concelho logo em 2016. No ano seguinte foi feito um protocolo com o Agrupamento de Escolas de Penalva do Castelo e em 2018 com o agrupamento de escolas e o município de Aguiar da Beira.  

O alargamento das escolas aos concelhos da região foi uma lufada de ar fresco e também uma garantia de continuidade. Durante a vigência do Quadro de Referência Estratégica Nacional (QREN) havia financiamento por via do Plano Operacional Potencial Humano (POPH). Quando entrou em vigor o Portugal 2020, passou a ser o Orçamento de Estado a assegurar estas transferências, e para Ferreirim o só houve comparticipação para pouco mais de 20 alunos. As queixas de Aquilino Ribeiro que permanecem atuais em muitos aspetos… A fórmula de contornar este centralismo do Orçamento de Estado foi encontrada no âmbito do Plano Integrado e Inovador de Combate ao Insucesso Escolar (PIICIE) que municípios como Sernancelhe conseguiram aprovar no Norte2020. Estes planos foram criados também com vista a trabalhar para um alargamento da ação municipal e intermunicipal na educação que respeite e valorize a autonomia institucional das escolas e a autonomia profissional dos docentes. 

Alheios a toda esta conjuntura de dificuldades de financiamento, às ginásticas orçamentais que precisa de fazer uma estrutura que tem já um quadro de 20 professores e dois auxiliares, os alunos como Filipa Coimbra, inscrita no ensino articulado, ou como Telmo Aguiar, que já terminou o 12º ano, mas mantém as aulas no Conservatório, continuam a fazer a sua parte. Estão empenhados em fazer sempre o melhor em termos musicais, e dizem-se entusiasmados pelo convívio trazido pelas aulas. Afinal, garantem, o melhor do Conservatório de Música de Ferreirim é o ambiente familiar que existe entre professores e alunos.  

Qualidade académica e ambiente familiar 

“O melhor do Conservatório são as pessoas que aqui estão. Sentimos que é uma família, que estamos cá todos uns para os outros”, diz Telmo Aguiar, um dos primeiros alunos do Conservatório, e que tem agora 18 anos. Filipa, um dos elementos mais novos, tem um discurso semelhante: “Se fosse descrever o conservatório numa palavra, era família. Porque família é estarmos com os outros, gostarmos uns dos outros, ajudarmo-nos nos momentos bons e nos maus. E acho que aqui no conservatório acontece isso tudo”, diz Filipa. 

A sensação de familiaridade não é fortuita. É, aliás, assumida. Desde 2019, altura em que um grupo de pais se juntou para apoiar a Banda Oitenta e Um de Ferreirim, na solenização de uma missa no santuário de Fátima, que surgiu uma nova estrutura que não tardou a se oficializar: o Coro dos Encarregados de Educação do Conservatório Regional de Música de Ferreirim. “Tem sido uma enorme mais-valia os pais pertencerem ao projeto, estarem connosco nas atividades. E a própria comunidade vê que existe um coro de pais que acompanha os alunos, que está sempre com os alunos”, defende Artur Costa.  

O coro dos encarregados de educação, com cerca de 50 elementos, acaba por valorizar o ensino artístico junto dos agrupamentos de escolas, ao reforçar a posição do ensino articulado e do ensino artístico. “Primeiro é preciso educar os pais, para que os filhos depois também compreendam. Hoje em dia, os próprios pais procuram o ensino articulado. Abrimos captações e os pais já têm intenção de os trazer. Nos primeiros anos não era assim”, recorda o diretor pedagógico, resumindo que os sucessos até agora alcançados são, por isso, “um sucesso de todos”. E o lema do projeto educativo do Conservatório de Música de Ferreirim é mesmo esse: “Uma escola de todos e para todos”. 

Quando aceitou o desafio de lecionar a classe de conjunto do ensino supletivo do Conservatório Regional de Música de Ferreirim, ou seja, ser maestro da orquestra que ali se formou, David Rodrigues diz que estava longe de imaginar a qualidade da massa humana que tinha à sua espera. Chegou em 2020, já o Conservatório tinha quase cinco anos de existência, e trazia na bagagem um par de desafios que admitia serem demasiado ambiciosos, ou melhor, demasiado difíceis ou complexos para os alunos. “Pensava que seriam desafios complicados de cumprir, mas acreditava que iriam permitir que os alunos crescessem com eles. A minha surpresa foi que eles conseguiram ultrapassar todas as dificuldades, e vejo que conseguem tocar cada vez melhor”, diz.  

David Rodrigues é licenciado em saxofone, tem mestrado em ensino e vasta experiência a dirigir orquestras – foi, por exemplo, maestro da Banda Distrital, que hoje é conhecida como a Banda Sinfónica Transmontana. Em Ferreirim, começou com um grupo reduzido de alunos, mas o nível de execução demonstrado foi de tal forma subindo que outros colegas, de outros anos, também começaram a querer fazer parte do grupo e evoluir a sua performance e o seu nível enquanto instrumentistas. A Orquestra do Conservatório Regional de Música de Ferreirim tem cerca de meia centena de elementos. a Filipa é a mais nova. 

A qualidade e o empenho são tais, que o maestro assume agora um objectivo diferente, para si próprio: “conseguir acompanhar a vontade e o nível dos alunos”. “Nós propomos os desafios e eles agarram-nos rapidamente, unem-se para os resolver. São eles próprios que fazem as divisões que querem, que dizem vamos ensaiar determinada parte, experimentar esta ou aquela situação, apoiam-se uns aos outros. E isso é incrível”, conta o maestro. A preocupação principal é criar uma dinâmica de grupo, manter uma rotina. “E com isso conseguimos ir subindo os níveis até ao infinito”, advoga. 

David Rodrigues consegue desfiar muitos momentos marcantes com os seus alunos. O concerto no Teatro Ribeiro Conceição, onde apresentaram a Divina Comédia, de Robert Smith, é um deles – “quase toda a gente duvidava que eles eram capazes de criar aquilo. E eles fizeram um concerto extraordinário, com um nível bastante alto”. O concerto no Panteão Nacional, que tanto emocionou Filipa, também está nesse rol. Claro. “São momentos muito emocionantes”, sublinha. E é fácil acreditar. 

Mas para David Rodrigues os melhores momentos acontecem quando estão em sala de aula, sem compromissos, e conseguem falar sobre tudo, até sobre a vida individual, e crescer em conjunto com a opinião e com a ideia de cada um. “E esses momentos que nós passamos ali que ninguém vê, é que são os mais marcantes para mim. Porque estamos a construir alguma coisa, todas as aulas construímos mais um pouco. E é claro que o resultado final é incrível”, diz o maestro. 

Um resultado final que leva os miúdos a querer continuar. Telmo Aguiar tem agora 18 anos e está no conservatório desde a sua fundação. “Quando vim aprender música isto para mim era um hobby. Vim por causa da banda, queria tocar na banda da minha terra. Mas depois as coisas foram crescendo e acontecendo. Ainda aqui estou. Porque cada vez que toco clarinete sinto, sobretudo, uma sensação de liberdade. Porque nós é que mandamos em nós. Mesmo tendo uma partitura à nossa frente, nós é que fazemos a música. E isso dá-me uma sensação de liberdade. E de felicidade”, diz Telmo Aguiar. 

Já Filipa Coimbra diz que foi a mãe quem teve a ideia de a inscrever na música, no ensino articulado. “E hoje em dia estou-lhe muito agradecida por isso. A música fez-me melhorar em tudo, como pessoa, como aluna e como instrumentista”, analisa. Diz que aprendeu a concentrar-se melhor, começou a tirar boas notas, até a matemática, onde antes tinha muitas dificuldades.  

David Rodrigues diz que foi em Ferreirim que recuperou a fé no ensino e a fé no interior. “É possível haver projetos de qualidade em territórios do interior. Até numa aldeia”, afirma o maestro. Ainda há esperança. E isso, afinal de contas, também é um “Valeroso Milagre”. 

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Ficha Técnica

Textos: Abel Coentrão e Luísa Pinto

Fotografia e Vídeo: Teresa Pacheco Miranda

Edição: Gabinete de Comunicação da CCDR NORTE

Coordenação: Jorge Sobrado

Identidade Gráfica: Opal Publicidade