Segredos a Fresco: A nova vida das Pinturas Murais do Norte
Maria do Céu Rego admite que não sabia o que havia de esperar. Quando lhe disseram que iam fazer obras na Capela do Senhor da Fraga, uma das três capelas da aldeia de Castro Vicente, no concelho de Mogadouro, e um dos seus lugares de grande devoção, encolheu os ombros. Iriam reparar o retábulo, pensou. Alindar a capela para receber devotos e visitantes, talvez. Diz que não esperava “nada”.
Por isso, surpreendeu-se.
“Eu não ia imaginar que estavam lá essas lindas pinturas. Sempre pensei que, por detrás, estaria uma parede vazia!”, relata. Enganou-se.
Nem todos estavam enganados – quem lá foi para fazer a obra sabia do que andava à procura. Depois de terem sido encontrados vestígios de pintura mural a fresco no altar principal da capela, a equipa coordenada por Lília Pereira da Silva, historiadora da arte, antiga responsável pelo inventário histórico-artístico da Diocese de Bragança-Miranda e atual técnica superior do Património da Associação de Municípios do Baixo Sabor (AMBS), sabia bem que iria encontrar algo. Ainda assim, ninguém adivinhava concretamente o quê.
Maria do Céu recorda-se bem do dia em que o presidente da junta espicaçou a população: “Vocês nem imaginam o que está lá dentro, ide ver com os vossos próprios olhos.” Maria do Céu assim fez.
“Quando vi aquelas pinturas, fiquei emocionada. Como é que uma coisa tão bonita esteve escondida durante tantos anos?” Agora preocupa-se em perceber o que querem dizer aquelas figuras e fica feliz ao reconhecer que, ao centro, está S. Vicente, padroeiro da aldeia, figurado com o seu corvo.
Mas aquela capela é do Senhor da Fraga, e a Fraga é a que, a umas poucas centenas de metros, permite ao visitante abeirar-se de uma paisagem de cortar a respiração, num dos muitos e estonteantes miradouros que convidam a vislumbrar os lagos do Sabor.
O projeto História a Fresco – Rota da Pintura Mural, idealizado pela Associação de Municípios do Baixo Sabor (AMBS), que obteve um financiamento de 680 mil euros do FEDER, permitiu criar uma rota com 22 núcleos de pintura mural a fresco, localizados nos quatro municípios que integram a AMBS: Alfândega da Fé, Macedo de Cavaleiros, Mogadouro e Torre de Moncorvo. A Capela do Senhor da Fraga, em Castro Vicente, é um desses núcleos.
“Sabíamos que íamos encontrar alguma coisa. Mas não sabíamos o quê. Assistir a esta revelação, ter participado em todo este projeto desde o início, é um grande privilégio”, diz Lília Pereira da Silva, historiadora da arte e técnica superior do património na AMBS.
O projeto nasceu da vontade da AMBS de criar a primeira rota de cariz cultural nos lagos do Sabor. O aproveitamento turístico daqueles 70 quilómetros de água, desde a barragem do Baixo Sabor até à foz do Azibo, já se fazia por rotas rodoviárias e trilhos pedestres, sempre pontuados por incríveis miradouros, uns mais estruturados, outros mais selvagens.
A Rota da História a Fresco, ou Rota da Pintura Mural, foi o primeiro projeto cultural da associação, concebido para valorizar e divulgar um património que permaneceu escondido e esquecido. Insere-se num projeto mais abrangente, chamado Navegar na Montanha – Caminho do Sabor, e proporciona aos visitantes o acesso a uma arte singular, com origem nos séculos XVI e XVII. “O trabalho desenvolvido pela nossa equipa técnica permitiu trazer essa arte à luz do dia, conservando-a e protegendo-a. Sabemos que muitas dessas obras foram criadas por artistas portugueses, mas também espanhóis. O objetivo agora, além da criação da rota entre as 22 igrejas intervencionadas – mais uma –, é abrir este projeto ao público”, diz Vitor Sobral, secretário executivo da Associação de Municípios do Baixo Sabor.
História a Fresco
Durante muito tempo, pensou-se que o território de Trás-os-Montes, em especial a região dos lagos do Sabor, teria pouca pintura mural a fresco. Isto porque a cal, material essencial para esta técnica, é relativamente escassa na região. Mas havia conhecimento de casos isolados, como a Capela de Nossa Senhora da Teixeira, em Açoreira, Torre de Moncorvo, que sempre exibiu os seus frescos – nunca foi coberta ou alterada. O povo diz à boca cheia que é a “Capela Sistina” da região.
Lília Pereira da Silva explica que a pintura mural a fresco era um dos mais importantes meios de transmissão da fé na Idade Média. “A maior parte da população era analfabeta, e as missas eram em latim. Como é que percebiam as histórias da Bíblia? Através das imagens. As pinturas não são apenas decoração. São uma catequese visual.”
Pelo grande número de exemplares que chegaram até hoje, quer em igrejas de maior importância, quer em pequenas capelas de aldeias isoladas, podemos afirmar que, de um modo geral, a pintura a fresco foi o recurso decorativo preferido, tornando-se provavelmente numa “moda” à qual clero e nobres aderiram incondicionalmente.
Mas, de preferida, passou a preterida, subalternizada pelos retábulos de talha dourada ou policromada e pela atualização do gosto estético, a que todos se votaram desde que começou a chegar o ouro do Brasil. E assim, estas obras, com 400 e 500 anos de história, foram ocultadas pelas comunidades. “Algumas destas pinturas estiveram tapadas durante mais de 200 anos. Por isso, não havia memória também nas comunidades, que se surpreenderam, e muito, com esta revelação”, diz Lília.
Não foi sempre fácil convencer a população a deixar mexer nos seus símbolos, a alterar-lhes a fisionomia. Inicialmente, as comunidades locais demonstraram resistência, questionando a remoção do retábulo. No entanto, após a revelação das pinturas murais, a reação acabou por ser positiva. “Para além de desenterrar a história, devolvemos o património às comunidades, que passaram a valorizar mais o seu legado”, vaticina a historiadora de arte.
“Ficámos deslumbradas”, concorda, de imediato, Maria do Céu. Está agora acompanhada pela irmã, Maria da Conceição. Ambas nasceram e cresceram na aldeia, casaram com dois irmãos e trabalharam em Espanha apenas três anos – o tempo suficiente para juntar dinheiro e construir uma casa. Nunca quiseram sair da aldeia.
Maria da Conceição corrobora o entusiasmo . “Esta descoberta veio enriquecer o património da nossa aldeia e atrair mais visitantes. Agora vêm grupos de turistas, motociclistas e muita gente de fora. Esta capela tornou-se um dos nossos ex-líbris. Antes, não era tão visitada, mas agora até vem uma televisão para nos filmar!”, brinca.
A primeira fase de intervenções está concluída, centrando-se sobretudo em melhorias físicas. Foram restauradas as estruturas retabulares — ao desmontar os altares, foi necessário garantir a harmonia entre a pintura mural a fresco e os retábulos barrocos. No património edificado, foram realizadas obras para mitigar a humidade ascensional, um dos principais inimigos da pintura mural: abriram-se drenos nas igrejas e capelas, repararam-se coberturas e criaram-se acessos adequados. Além disso, foi criado um Centro de Interpretação da Pintura Mural, em Macedo de Cavaleiros, que serve como ponto de partida para a rota de visitação já existente, que a AMBS pretende reforçar.
O próximo passo é desenvolver um modelo inovador que garanta a visitação autónoma e segura das 22 capelas, ermidas e igrejas. “Estamos a trabalhar com os nossos parceiros, nomeadamente o Instituto Politécnico de Bragança, no desenvolvimento de uma aplicação que permitirá visitas autónomas, proporcionando uma experiência cultural enriquecedora”, explica Vítor Sobral.
“A Rota da Pintura Mural – História a Fresco é um projeto distintivo, tanto no contexto geográfico como territorial. Permite-nos preservar o legado do passado, com os olhos postos no futuro, transportando o nosso maior ativo – as pessoas – para as oportunidades turísticas, culturais e espirituais que este território oferece”, afirma Vítor Sobral, secretário executivo da associação de municípios.
O envolvimento das comunidades locais e do clero tem sido essencial, uma vez que estas igrejas e capelas continuam a ser espaços vivos de celebração da fé. Até agora, foi possível recuperar integralmente 22 igrejas e capelas, mas acredita-se que ainda há pinturas murais por descobrir e preservar.
A AMBS está, por isso, a colaborar com a Entidade Regional de Turismo do Porto e Norte para integrar estas igrejas na Rota do Fresco a Norte — seis delas já receberam esse selo. Além disso, está a ser preparado o processo de classificação destas igrejas como património de interesse público, o que abrirá portas a novos financiamentos para dar continuidade ao projeto.
“Esta é uma fase posterior, que queremos candidatar ao Portugal 2030 e ao Norte 2030, programas que já apoiaram a primeira fase do projeto. Num tempo recorde, concretizámos uma iniciativa que muitos duvidavam ser possível executar em apenas um ano. Como dizemos aqui em Trás-os-Montes: milagres fazemos na hora, impossíveis demoram um pouco mais. Este foi um projeto bem-sucedido, que abre as portas do interior do país ao mundo”, conclui Vítor Sobral.
Maria da Conceição Rego, que avisa que, apesar de não ter estudado muito, “gosta de brincar com as palavras e de pensar que se ajeita com elas”, tem num pedaço de papel o sentir escrito a caneta. Aos 65 anos, endireita a coluna e afina a voz.
Com muita honra e distinção,
eu sou Maria da Conceição.
Vou recitar a minha poesia,
desejo que todos desfrutem deste dia.
São apenas palavras que digo com muita emoção,
mas foram tiradas do meu coração.
Do património desta aldeia
temos muito o que falar:
tem obras antigas, de longa data,
e lindas para visitar.
Uma linda paisagem em todo o seu esplendor,
e também respiramos o perfume das amendoeiras em flor.
Do Santo Cristo há um caminho
que vai para o miradouro.
Tem uma miragem espetacular,
e aí a natureza põe-te no teu lugar.
E não convém desafiar.
O céu é lindo e cheio de cor,
e lá no fundo vejo o Rio Sabor,
calmo e com murmúrio melancólico.
Parece cantar uma canção,
e é a canção mais bela
que dita o meu coração.