Em Braga, abriu-se uma nova janela para as Ciências da Saúde e da Vida.
Em Braga, longe da vista, numa sala subterrânea isolada das vibrações do mundo lá fora e dos campos eletromagnéticos, há um “canudo” que não serve para ver a cidade. Com propósitos bem mais ambiciosos, na sede do Laboratório Internacional Ibérico de Nanotecnologia (INL), no sopé do monte do Bom Jesus, o novo microscópio eletrónico do projeto CryoEM-PT pretende ajudar as ciências da saúde e da vida a ver muito mais longe, o que neste caso significa infimamente mais perto. Com ele, o INL tornou-se, em 2023, o nó central de uma rede que permite ao sistema científico português aceder a um equipamento dispendioso, com uma equipa qualificada para manusear as amostras e a máquina, e para dar formação aos investigadores que a queiram também usar.
A um leigo poderá ser permitido escrever que o microscópio comprado pelo INL, com um apoio de 2,5 milhões de euros do Norte 2020, só não vê a alma. A máquina trabalha com amostras biológicas preservadas a -200º centígrados, mas, ainda assim, não consta que a algum cientista lhe tenham aparecido, nas imagens de muito alta resolução, indícios materiais desse suposto sopro divino, supostamente imortal. Mas não sendo a anima o que os anima, há muito para descobrir no que esta máquina já consegue pôr diante dos nossos olhos. Descobertas que não nos tornarão imortais, mas que podem, seguramente, ajudar a prolongar as nossas vidas, com saúde.
Entender processos biológicos complexos
Segundo Paulo Ferreira, líder do grupo de microscopia eletrónica do INL e coordenador do projeto CryoEM-PT, a aquisição do microscópio foi motivada precisamente por desafios científicos nas ciências da vida, e vai servir a investigação em áreas tão cruciais como a oncologia ou as doenças degenerativas. “Para entender estas doenças e desenvolver formas de as atacar ou curar, é necessário compreender como os sistemas biológicos se manifestam a escalas muito pequenas. O corpo humano é feito de átomos e moléculas, e para desenvolver tratamentos eficazes, é preciso entender a biologia a essas escalas”.
Para isto, a crio-microscopia representa um avanço significativo. Apesar de serem um avanço em relação aos microscópios óticos, de alcance mais limitado, os convencionais microscópios eletrónicos de transmissão, que operam à temperatura ambiente, danificam as amostras devido à interação entre estas e o feixe de eletrões. E, para mitigar este problema, foram desenvolvidos equipamentos que trabalham com amostras biológicas arrefecidas muito rapidamente, a cerca de -200 graus Celsius, impedindo, por exemplo, a cristalização das moléculas de água no interior de uma célula, que acabaria por danificá-la.
Ao preservar a amostra, a crio-microscopia possibilita a observação de estruturas biológicas em escalas muito pequenas, como a dos átomos e moléculas. Foi com um microscópio deste tipo, aliás, que ficamos a conhecer o rosto, ou a estrutura, de um conhecido vírus que, entre 2019 e 2022, pôs o mundo de pernas para o ar. “Esta capacidade é crucial para entender processos biológicos complexos e para o desenvolvimento de tratamentos para diversas doenças”, assinala o coordenador do projeto e da rede que este vai suportar.
Mais que um microscópio, uma rede
Criado em 2005 por iniciativa dos Governos de Portugal e de Espanha, desde a sua efetiva instalação em 2010, o INL agrega centenas de investigadores de 30 nacionalidades, a trabalhar em diversos campos de pesquisa e aplicação de nanotecnologias, com impacto em áreas como os materiais, a computação e a eletrónica, as energias limpas, a alimentação e, entre outros, as tecnologias da saúde. Para além disso, o instituto, atualmente dirigido por Clívia M. Sotomayor Torres, fornece serviços e estabelece parcerias, como forma de disponibilizar a outras instituições e projetos o capital humano e os equipamentos de ponta instalados no edifício erguido nos terrenos de um antigo parque de diversões.
Foi por isso natural que, mais que a aquisição de um “supermicroscópio” para uso interno, a acrescer a outros equipamentos complementares, com diferentes características, o projeto CryoEM-PT se tenha configurado como o pontapé de saída para a criação de uma rede portuguesa de microscopia avançada. Dedicada às Ciências da Vida, mas com abertura para utilização por outras áreas de investigação, a National Advanced Microscopy Network for Health and Life Sciences inclui uma dúzia de nós, abrangendo, para além do INL, praticamente todas as organizações relevantes na área da biologia e da saúde em Portugal, que estão representadas, aliás, na Comissão Científica da organização.
São, assim, nós regionais desta rede as universidades do Minho, de Coimbra e da Beira Interior; o Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (I3S) do Porto; o Instituto de Tecnologia Química e Biológica António Xavier da Universidade Nova de Lisboa; a Unidade de Ciências Biomoleculares Aplicadas – UCIBIO, também da Nova; o Instituto Superior Técnico; o Instituto Gulbenkian de Ciência, o Instituto de Medicina Molecular João Lobo Antunes, da Universidade de Lisboa; o MED – Mediterranean Institute for Agriculture, Environment and Development, da Universidade de Évora; e o Centro de Ciências do Mar (CCMAR) da Universidade do Algarve, em Faro.
Treinar os investigadores
Investigadores destas e de outras instituições podem enviar as amostras para Braga, onde a equipa local do projeto as prepara e submete à observação microscópica, enviando os dados gerados para processamento nas respectivas instituições. Ou podem deslocar-se ao INL, para aprender a trabalhar com o equipamento, desenvolvendo, assim, as suas próprias competências na área da microscopia eletrónica avançada. Graças à contratação de recursos humanos especializados, várias pessoas já foram ou estão a ser treinadas para o uso deste equipamento, e Paulo Ferreira não tem dúvidas de que pelo simples facto de ele existir será mais fácil, aos parceiros, contratar investigadores com competências para trabalhar nesta área.
Ao contrário do que já todos vimos acontecer noutras tipologias de projetos infraestruturais financiados por dinheiro europeu, este foi claramente pensado numa lógica de racionalização de custos, de partilha e otimização de recursos e na perspetiva de criação de um espaço de desenvolvimento de conhecimento e de prática num domínio complexo e caro. Algo só possível com acesso franco, e próximo, a equipamentos de ponta. E neste caso, o INL ganhou vantagem por, desde logo, ter um edifício recente, cuja conceção já previu parte das condições necessárias para a instalação deste tipo de equipamento, que ainda assim sofreu obras de adaptação, que a candidatura cobriu.
Investimento contínuo
Para além do microscópio – um ThermoFisher Glacios 200 kV Cryo-TEM System de dois milhões de euros que, embutido num armário singelo, não nos mostra, por fora, o seu imenso potencial – foram despendidos mais 500 mil euros noutros equipamentos complementares e na contratação de uma equipa com competências para preparar amostras, operar a maquinaria e assegurar o regular funcionamento dos potentes computadores associados que nos revelam, esses sim, o alcance da parafernália escondida dentro do armário.
Investiu-se ainda na aquisição de capacidade de armazenamento de dados. Um recurso também caro, mas crucial, se pensarmos que se conseguem gerar milhares de imagens por segundo – leu bem, por segundo – com resolução de várias dezenas de mega pixels. Na China, numa das visitas técnicas de preparação do projeto, Paulo Ferreira chegou a ver sistemas capazes de armazenar petabytes de dados, e um PB, nota, custa um milhão de euros. Como termo de comparação, o INL tem 500 terabytes disponíveis internamente.
Neste aspeto, o coordenador do CryoEM-PT espera que, num próximo quadro de financiamento, seja possível investir no aumento da capacidade de computação e no armazenamento de dados nas instituições que funcionam como nós regionais de acesso à rede. Neste momento, e num cenário de uso regular deste microscópio, o INL não tem capacidade para guardar quantidades gigantescas de dados durante semanas ou meses, enquanto são acedidos remotamente, pelas equipas de investigação, assume.
Manter esta rede atualizada e capaz de ombrear com organizações do género no espaço europeu implicará certamente uma continuidade nos investimentos ao nível da capacidade de computação gráfica associada, do já referido armazenamento de dados, mas também da incorporação, a muito breve prazo, do machine learning. A inteligência artificial já se está a tornar num auxiliar dos investigadores na interpretação das imagens produzidas por microscópios como os que existem em Braga, e que nos revelam uma espécie de mundo paralelo, de difícil compreensão para o comum dos mortais.
Ver de perto, para chegar mais longe
Com uma longa experiência na área da microscopia, Paulo Ferreira assume que o fascina o facto de conseguir ver a realidade para lá da aparência a olho nu da matéria que nos rodeia. “Tudo que nós vemos à nossa volta é construído sempre pelos mesmos ingredientes, os mais básicos da vida, que são os átomos e as moléculas”. E para lá da aparente desordem do mundo, há, naquela escala ínfima, “uma ordem, uma organização”, que não deixa também de o atrair, formando estruturas surpreendentes e belas. Merecedoras, afirma, de figurarem como um quadro numa parede, como acontece em sua casa, libertando a imaginação de quem observa tais imagens desconhecendo a sua origem.
Nesta relação com o “invisível”, se não há uma alma para descobrir, há o ânimo de deixar que a natureza, revelada na sua micro ou nano-escala, nos conduza à descoberta; de deixar que sejamos surpreendidos pelo que nos é dado a ver, e que se às vezes confirma as nossas hipóteses e teorias, muitas vezes as contraria e atira-nos para um novo turbilhão de perguntas, obrigando a pesquisa a seguir novos caminhos, assume Paulo Ferreira. E, neste aspeto, ver tão perto, é, de facto, uma maneira de chegarmos mais longe.