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Mirandês

O mirandês resiste! A língua de Miranda do Douro luta para sobreviver através do ensino em todos os níveis de escolaridade no Agrupamento de Escolas de Miranda do Douro.

Mirandês

O mirandês resiste! A língua de Miranda do Douro luta para sobreviver através do ensino em todos os níveis de escolaridade no Agrupamento de Escolas de Miranda do Douro.

“Buonas tardes, porsor de Mirandés!”

L mirandés, ou lhéngua mirandesa, ye l nome dua lhéngua falada ne l Nordeste de Pertual, yá dezde antes de la fundaçon de la nacionalidade pertuesa. Traduzindo: O mirandês, ou língua mirandesa, é o nome de uma língua falada no nordeste de Portugal, ainda antes da fundação da nacionalidade portuguesa. É uma língua falada, é uma língua escrita e é uma língua oficial portuguesa desde que, em janeiro de 1999, a Assembleia da República aprovou o reconhecimento oficial dos direitos linguísticos da comunidade mirandesa (Lei 7/1999 de 29 de janeiro). E é uma língua que está em perigo, por ter cada vez menos falantes.
Quem a descobriu foi o filólogo e etnógrafo José Leite de Vasconcelos, ainda os dias do calendário não haviam chegado ao século XX. Até 1884, a língua era apenas falada – foi Leite de Vasconcelos o primeiro a escrevê-la, num poemário chamado Flores Mirandesas. Desde então, muita coisa mudou. E, chegados ao século XXI, se houvesse para as línguas vivas o mesmo regime de proteção que há para espécies ameaçadas de extinção, poder-se-ia dizer que o mirandês teria de ser uma língua protegida, por estar criticamente em perigo.
Não é que algum dia tivesse sido uma língua profusamente disseminada. Foi, antes, uma língua que resistiu a todas as globalizações, talvez protegida pela orografia e pela geografia, encravada num planalto onde Espanha termina e Portugal começa, e vice-versa. Mas, como língua minoritária, rapidamente captou a atenção de investigadores e estudiosos. Em 2009, a filóloga romena Aurelia Merlan publicou uma monografia onde se refere ao desequilíbrio linguístico nas Terras de Miranda. Nesse trabalho, percebe-se que, por volta de 1960, o mirandês teria cerca de 15 mil falantes, isto é, 68% da então população mirandesa. Naquela altura, dois em cada três mirandeses sabiam e podiam falar a língua mirandesa, sendo certo que não a falavam em todos os locais. O português era a língua oficial para o culto religioso, a escola, a justiça e a administração pública. O mirandês era a língua habitual dos usos íntimos e informais, que se falava com a família, os vizinhos e os amigos.
Em 2020, vários investigadores da Universidade de Vigo, coordenados pelo catedrático de Filologia Galega Xosé-Henrique Costas, andaram pelas Terras de Miranda a fazer questionários à população para estudar os “usos, costumes e competências linguísticas da população mirandesa”. Em 2023, publicaram o estudo Presente e Futuro da Língua Mirandesa, onde se estima que há 3500 falantes, dos quais apenas 1500 a utilizam regularmente. O Censos 2021 mostrou que, no concelho de Miranda do Douro, vivem menos de 6500 pessoas. O estudo da Universidade de Vigo aponta que, ao atual ritmo de perda de falantes, em 2050 ou 2060 o mirandês perder-se-á como língua viva.

Irredutíveis mirandeses

A luta para impedir o desaparecimento da língua mirandesa começou a ser travada em muitas frentes. A principal, ou a mais resistente e persistente, desenvolve-se nas escolas, onde já se ensina mirandês desde o pré-escolar até ao 12.º ano de escolaridade. Afinal, nas salas de aula do Agrupamento de Escolas de Miranda do Douro, parece que, à semelhança da Gália idealizada por Goscinny e Uderzo, se está a formar uma crescente legião de irredutíveis. Sempre em regime opcional, mas com taxas de adesão crescentes, há sempre quem queira beber dessa poção mágica.
Duarte Martins é um dos mirandeses empenhados nessa aventura. Natural de Malhadas, uma bonita aldeia do concelho de Miranda do Douro, cresceu a ouvir mirandês dos pais e avós. “Os meus avós falavam exclusivamente mirandês. Os meus pais só falam mirandês comigo. O primeiro contacto que tive com o português foi na escola primária. A sério”, recorda. Agora, no entanto, a realidade é outra: “Antigamente, havia muita gente a falar mirandês nas ruas e ninguém falava mirandês na escola. Agora, há cada vez mais gente a falar mirandês na escola, e cada vez menos gente a falar mirandês na rua.”
Para ele, a odisseia arrancou há pouco mais de 20 anos, quando começou a dar aulas de mirandês aos alunos do 1º, 2º e 3º Ciclos. Mas a descoberta de que o ensino do mirandês poderia ser a sua principal missão aconteceu ainda em Lisboa, enquanto estudava. “Havia muita gente com curiosidade em relação ao mirandês. E eu comecei também a ver a língua com outra perspetiva, a valorizá-la mais. Quando terminei o curso, surgiu a vontade de trabalhar e, por identificação com a cultura e com a língua, quis arrancar com o projeto em mirandês.”
No Agrupamento de Escolas de Miranda do Douro, o presidente António Santos refere que tem sido a militância e o empenho dos professores a garantir o rigor e a criatividade necessários à missão de ensinar uma língua. “Estão em todos os níveis de escolaridade, criam os seus próprios materiais pedagógicos, articulam-se com os outros professores para que tudo bata certo, faça sentido”, sublinha.
Duarte Martins admite que já teve mais energia, mas continua com o necessário vigor. “Tem sido uma aventura e tanto. Foi preciso muito trabalho, ultrapassar muitas barreiras, vencer muitos obstáculos. Mas agora já somos três professores, e já há aulas de mirandês em todos os anos de escolaridade.”
No ano letivo de 2024/2025, há 612 alunos a frequentar o Agrupamento de Escolas de Miranda do Douro e, destes, 472 estão inscritos no ensino da língua mirandesa, ou seja, 77%. Nos primeiros anos de escolaridade, a adesão é plena. “Todos os alunos são inscritos na disciplina”, explica António Santos. No secundário, quando os alunos têm exames e uma carga horária mais pesada, há quem opte por não se inscrever. “Funciona como uma Atividade de Enriquecimento Escolar, e os resultados não contam para a média do aluno. Por isso, alguns optam por não se inscrever.”
O Ministério da Educação tem contratados três professores de mirandês. No ano letivo de 2024/2025, foi a primeira vez que foi contratada uma professora para o pré-escolar e jardim de infância. Esta professora percorre todas as escolas do concelho, levando o mirandês a todos os alunos — até mesmo ao jardim de infância da aldeia de Palaçoulo, onde, este ano, só há uma criança inscrita.

Materiais didáticos

A falta de materiais didáticos sempre foi um desafio. Há dois anos publicou-se o Cachapin, nome de uma ave das Terras de Miranda, curiosa e irrequieta, tal como se quer que sejam as crianças. O livro é destinado aos 1º e 2º anos de escolaridade e resultou do estudo para a elaboração de recursos pedagógicos para o ensino da língua mirandesa incluído no Plano Integrado e Inovador de Combate ao Insucesso Escolar das Terras de Trás-os-Montes (PIICIE-TTM). “Os materiais didáticos são uma das maiores necessidades para o ensino da língua mirandesa”, frisa Alfredo Cameirão, presidente da Associação da Língua e Cultura Mirandesa (ALCM), que colaborou na criação do manual, que foi financiado pela Comunidade Intermunicipal das Terras de Trás-os-Montes.
Na Escola Básica de Miranda do Douro, Leonor, Santiago, Gabriela, José e os restantes alunos do 2.º ano folheiam o Manual “Las mies Purmeiras Palabras an Mirandés”. Estão a aprender as partes do corpo humano em mirandês. Duarte aponta para o cotovelo e a turma responde em coro: “Quetobielho”. E assim sucessivamente: “Cuostas”, “mano”, “pierna”, “uolhos”, “nariç”, “zinolho”. Depois cantam cantigas tradicionais, debitam lengalengas e respondem com convicção que, quando forem crescidos e já forem bombeiros, futebolistas, professores, veterinários e médicos, continuarão a saber falar mirandês.

Na vizinha vila de Sendim, Emílio Martins assegura a aula semanal. A turma do quinto ano tem apenas oito alunos, mas todos se inscreveram no mirandês. Até Dima, um menino ucraniano que chegou há menos de dois anos e que já fala português — e mirandês. É ele quem alerta o professor para um gafanhoto que pousou do lado de fora da janela: “Porsor, está aqui um sertigalho!” Dima nem sabe se está a falar mirandês ou português. Em ucraniano, diz-se sarana , em Miranda do Douro, diz-se “sertigalho”.
Emílio sorri e a turma inteira interrompe a sopa de letras para ir ver o gafanhoto. “Eu não estou farto, porque gosto deles. E se eles se inscreverem no mirandês, às tantas, ainda vão ter de me aturar até ao 12.º ano”, brinca o professor. “Temos de estar sempre a reinventar-nos, porque o professor é sempre o mesmo, e temos de trazer alguma coisa de novo de vez em quando.”
E Emílio Martins reinventa-se. Licenciado em História, músico e até *youtuber*, criou o canal Mirandês 4 Kids há cerca de 11 anos. “São vídeos caseiros, nada profissionais, feitos com apetrechos das minhas garotas, de quando eram pequenas. Aproveito essas coisas e faço vídeos simples, mas que são uma forma de divulgar a língua”, explica.
“Não sei bem porque acabei a ensinar uma língua, quando, afinal, me licenciei em História”, confessa. Mas, depois de refletir um instante, percebe: “Afinal, falar mirandês é como respirar. Eu nasci em França, mas fui criado em Portugal, com os meus avós. Até aos 13 anos, o mirandês foi a língua que eu respirei.”

Num mundo globalizado, onde se valoriza o que é diferente, o mirandês é um património imaterial a preservar. “Se temos uma língua diferente, vamos aproveitá-la, vamos explorá-la. E é isso que eu tento fazer, às vezes na música, nos vídeos. Vamos perpetuar a memória dos nossos antepassados, honrar as nossas tradições. Os pauliteiros, as danças tradicionais, a capa de honras, a gastronomia, a posta mirandesa — tudo está associado à língua mirandesa.”
Os alunos da escola de Sendim levam este desafio a sério. Em 2024, formaram um grupo de pauliteiros. Ensaiam nos intervalos das aulas, tentam pôr em prática o que viram aos pais e avós. “O nosso objetivo é fazer sempre mais, fazer cada vez melhor. Até sermos os melhores”, afirma Rocio Martins. Nem que o céu lhes caia em cima da cabeça. Irredutíveis. Sempre.”
“Uma língua vive enquanto a falarmos, uma língua vai até onde a levarmos”, diz Duarte Martins. Nas escolas de Miranda do Douro, quer-se que a língua seja levada durante muito tempo e até muito longe.

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Ficha Técnica

Textos: Abel Coentrão e Luísa Pinto

Fotografia e Vídeo: Teresa Pacheco Miranda

Edição: Gabinete de Comunicação da CCDR NORTE

Coordenação: Jorge Sobrado

Identidade Gráfica: Opal Publicidade