Termas Romanas de Chaves: hoje como no princípio, a água
Chaves transpira água por todos os poros e tempos verbais. Ela é passado, mas continua bem presente na cultura e economia do concelho. E, durante algum tempo, chegou a ser condicional. Já neste século, quando o município decidiu musealizar as recém-descobertas termas romanas de Aquae Flaviae, a mesma água quente que, no início desta nossa era, retemperou as forças da Sétima Legião, escaldou os planos do município, que teve de adiar a abertura do espaço. Resolvido um grave problema de condensação, o museu já recebeu 230 mil visitantes desde a abertura, no ano II da pandemia de Covid-19. E tornou-se numa peça fulcral numa estratégia de desenvolvimento do concelho onde se estima que a água e o bem-estar permanecerão, no futuro como outrora, no centro de tudo.
A ocupação humana do território de Chaves não começou com os romanos. Mas, ao considerarem que águas quentes e terapêuticas ali existentes tornavam-na ponto de paragem obrigatória da Via XVII – a primeira grande estrada do recém-conquistado noroeste da península ibérica, entre Bracara Augusta (Braga) e Asturica Augusta (Astorga, em Leão) – eles mergulharam o futuro do povoado nesse bem precioso, que brotava da terra. Aquae Flaviae entrou na reta final do século I ostentando, no nome, o estatuto de cidade termal, num império que aprendera, com os gregos, a apreciar os banhos, e que, desde o século anterior, o primeiro antes da nossa era, ganhara, em Roma e noutras cidades, edifícios públicos monumentais, onde os balneários, para lá da higiene e retempero de forças, se tornavam num ponto de encontro.
Termas terapêuticas
À escala de Aquae Flaviae, o que os arqueólogos descobriram e expuseram nas primeiras duas décadas deste nosso século, expressa bem essa monumentalidade. Sob paredes e um teto negros, a deixar espaço para uma iluminação cénica, as duas maiores piscinas graníticas do complexo resplandecem, com a água mineromedicinal que continua a correr, a mais de 70 graus. Rui Lopes, que participou e acompanhou as escavações desde o primeiro momento, desce as escadas de uma delas, e ao tocar naquele plano líquido, parece abrir um portal para a história, que jorra da sua boca habituada a interpretar achados, a dar-lhes a cor, a carne e os ossos – ossos das galinhas de que um escravo se alimentava, por exemplo – que os nossos olhos não veem.
Pelas paredes, o equipamento que foi instalado para resolver os graves problemas de condensação provocados pelo encapsulamento destes achados no novo edifício trabalha discretamente, pouco mais parecendo que uma peça do revestimento interior. Pintado também de preto, este sistema, instalado após aturado estudo do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC), quase não se vê, deixando brilhar tudo o resto: os vários tanques usados para diversos tratamentos, um ninfeu, onde se orava às ninfas e zonas de estar e de circulação.
O que a nossa vista alcança a partir do circuito elevado de visitação ocupa uma área que, segundo o arqueólogo do município, representa, no total, apenas cerca de metade do antigo complexo balnear romano. E se quisermos ter uma perspetiva mais real da importância destas que, ainda assim, são consideradas “uma das maiores e mais bem preservadas termas medicinais até agora conhecidas nas províncias da Hispânia Romana”, importa escrever que o complexo termal chegou a representar um quinto do total da área da cidade.
A relevância de Aquae Flaviae
Por isso, não espanta que o que se descobriu em “apenas meio” balneário tenha alimentado, e continue a alimentar, a investigação histórica, catapultando o papel de Chaves enquanto importante polo arqueológico regional e estreitando, na atualidade, a sua relação com outras cidades termais do tempo do Império. Aquae Flaviae estava situada entre importantes complexos de mineração de ouro, como Tresminas, a sul, no território atual de Vila Pouca de Aguiar, e Las Medulas, já perto de Astorga, pelo que não é difícil imaginar a atratividade da cidade e das suas termas, parcialmente destruídas e soterradas na sequência de um grande sismo, nos finais do século IV. Desse evento trágico, chegaram até nós restos mortais de pessoas que, naquele momento, aqui se banhavam, recorda Rui Lopes.
Não há paredes originais, a segurar as grandes janelas por onde a luz entrava. Isso, como o dia a dia de quem aqui se banhava, fica para a nossa imaginação, alimentada por um vídeo que tenta reconstituir o que poderia ter sido aquele edifício, a partir da arquitetura desse tempo, da própria organização do espaço e dos achados, que incluem muitos materiais, como as tégulas da cobertura, madeira da caixilharia, inúmeros pertences dos banhistas e elementos decorativos vários, alguns deles em exposição.
O que a arqueologia e, posteriormente, a museologia nos ofereceram é um banho de imersão na história local, do tempo romano e não só. Ao longo dos séculos, a cidade continuou, de outras formas, a soterrar, debaixo de várias camadas, este espaço outrora central e entretanto escondido naquele que, na toponímia de Chaves, se tornou o largo do Arrabalde, pontuado, há décadas, por outro edifício importante, o do tribunal.
A água como “pedra angular”
O que aqui se passou nos últimos 20 anos, após uma sondagem que revelou uma laje com um fio de água, aprofundou a ligação dos flavienses com o seu legado romano, presente em múltiplos locais, mas desde logo na vetusta Ponte de Trajano construída pela Legio VII Gemina sobre o Rio Tâmega, ali a dois passos das antigas termas. E se o ressurgimento do termalismo no século XX manteve bem viva a relação deste território com a água, quer a musealização do antigo balneário, quer a abertura, já em Março de 2025, do complexo de piscinas termais ao ar livre Aquae Salutem, ambos com apoio de fundos regionais, materializam uma estratégia de desenvolvimento do concelho centrada na água, como explica o autarca de Chaves.
“A água é absolutamente nuclear, é a nossa pedra angular”, frisa Nuno Vaz, destacando que o termalismo, em crescendo desde 2017, e o turismo cultural atraem a Chaves milhares de pessoas todos os anos, beneficiando, por exemplo, a hotelaria e os mais de 120 restaurantes que existem no concelho. Mas, acrescenta o presidente da Câmara, a água tem sido também fonte de qualificação da economia local, através da investigação, que beneficiou da instalação, na cidade, do Centro de Valorização e Transferência de Tecnologia da Água.
O AquaValor é um projeto animado por uma associação privada sem fins lucrativos que tem como associados fundadores o Instituto Politécnico de Bragança, a Comunidade Intermunicipal do Alto Tâmega, o INESC TEC – Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência, a Universidade de Vigo, o Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro, entre outras organizações. Entre os sócios, alguns vivem, literalmente, do que a água lhes dá, como é o caso da Associação das Termas de Portugal e das empresas do setor do termalismo e das águas de consumo.
Nuno Vaz adianta que o centro realiza estudos de caraterização das águas para melhorar as evidências sobre os benefícios dos tratamentos termais, e explora também as possibilidades de utilização destas em novos produtos de bem-estar e cosmética ou na própria alimentação, como substituto do sal no fabrico de pão, exemplifica. Conclui, por isso, que a água é um elemento “absolutamente estrutural, para a dinâmica, economia, conhecimento e estratégia de Chaves, sendo fundamental para o passado, presente e futuro da região.
Para esse futuro importará também a expansão da geotermia como fonte de energia limpa para aquecer edifícios. Há anos que as águas quentes são usadas para amenizar o inverno em equipamentos públicos e privados na cidade, mas investimentos recentes, também eles suportados por fundos comunitários, permitiram expandir a rede de condutas subterrâneas, levando, em breve, água a 65 graus a um total de 24 imóveis, como a Biblioteca Municipal, o Lar Residencial da Santa Casa da Misericórdia, o Hotel Petrus, o tribunal, o Edifício dos Paços do Concelho, o edifício Paço do Duque de Bragança e o Museu de Arte Contemporânea Nadir Afonso. Uma opção que traz receitas ao município, e que lhe permite, bem como aos clientes privados, obter energia mais barata e, acima de tudo, limpa.
As mesmas fontes hidrotermais que curavam as feridas das centúrias romanas, mantêm hoje o seu potencial terapêutico e regenerador, atraindo 13 mil aquistas em 2024. Mas o seu impacto, como se percebe pela expansão dos seus usos, é, vinte séculos passados, muito mais profundo. Ultrapassadas, com a avaliação do LNEC e o apoio do Norte 2020, as insuficiências do projeto inicial, os 230 mil visitantes que já passaram pelo museu são bem a prova de como um equipamento cultural pode tornar-se uma âncora desta estratégia com fundações bem assentes… na água.