O neto do vigia florestal voltou a casa
Nuno Teixeira tem 40 anos, é pai de um filho de três. Mas ainda hoje há quem o conheça, e o chame, pelo nome que lhe deram em criança, o Relvinhas. Nuno cresceu, licenciou-se, casou, mas nunca deixou de ser o neto do vigilante florestal que vivia na Casa da Relva, uma das antigas casas de vigias florestais do concelho de Boticas. Mais do que vigia, o avô de Nuno era sobretudo quem coordenava a produção florestal do concelho de Boticas, porque era junto à Casa da Relva que estavam os viveiros municipais. O avô era o Castro da Relva, que comandava a plantação e o transporte de árvores. O filho ficou conhecido como o Carlos da Relva. “E eu fiquei a ser o Nuno Relvinhas. Quando eu e o meu pai jogávamos no futsal – porque ainda jogamos juntos – o nome que trazíamos nas costas das camisolas era mesmo Relvas e Relvinhas”, rememora.
O pai de Nuno já faleceu, a Casa da Relva já não existe. E aquela zona onde estava a casa do Vigia Florestal é hoje um Parque de Observação da Natureza, onde se organizam múltiplas atividades de turismo e de educação ambiental. Atividades essas maioritariamente organizadas pela Celtiberus, uma associação de cariz ambiental e cultural e que é presidida pelo mesmo Nuno Teixeira. “Há acasos felizes. E este foi, sem dúvida, um acaso feliz”, diz Nuno.
Quando saiu de Boticas para ir estudar Engenharia Ambiental na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), Nuno não sabia se regressaria ao seu concelho e se teria uma profissão onde pudesse exercer as atividades de que mais gosta. Para além do interesse pela natureza e biodiversidade, Nuno foi deixando crescer o entusiasmo pelo associativismo e pelo turismo de aventura. Foi fundador do Núcleo de Estudantes e vice-presidente da Associação Académica na UTAD, trabalhou no Parque Pena Aventura, em Ribeira de Pena, foi diretor na filial portuguesa da Itineris (empresa de animação turística de origem espanhola). E foi já depois de casado, com uma minhota de Cabeceiras de Basto que conheceu na universidade, que se mudou para Boticas. Nessa altura, o principal objetivo de Nuno era ter oportunidade de estar perto do pai, que enfrentava uma doença neurodegenerativa.
O regresso a Boticas aconteceu em 2014, por altura em que estava a arrancar o funcionamento do Boticas Parque Natureza e Biodiversidade. E aí começaram os acasos felizes. Pensado como um Centro de Observação da Natureza, o Boticas Parque foi sendo desenvolvido por fases, sempre com apoio a verbas comunitárias. O objectivo foi criar um espaço inovador, onde se conjuga a biodiversidade e a natureza, sempre tendo a valorização dos recursos endógenos e actividades no âmbito da educação ambiental e investigação científica em perspectiva. A classificação da paisagem agrícola do concelho de Boticas como Património Mundial permitiu, também, transformar o Boticas Parque numa espécie de hall de entrada que distribuiu os visitantes por todo o concelho, e permite-lhes o contacto com a natureza e as populações. Como se todo o concelho de Boticas fosse um museu natural. E o investimento no Parque enquadrava-se integralmente na Estratégia de Eficiência Colectiva desenhada no âmbito do Norte 2020, o que no caso do território Alto Tâmega o especializou no tema da água e da natureza.
Os apoios públicos ao desenvolvimento deste parque passaram pela criação de dois trilhos pedestres, uma via ferrata (um itinerário vertical construído com cabos de aço no ponto mais alto do concelho, em Alturas do Barroso) ou até a adaptação de um edifício para poder receber grupos de visitantes que venham participar nas actividades (uma antiga escolha em Carvalhelhos foi convertida em dormitório), ou então casais ou famílias que queiram ficar num dos dois bungalows (Boticas Parque Natur Houses) construídos no interior do parque. Os apoios permitiram ainda a requalificação de uma quinta pedagógica, com horta biológica, animais de quinta e todas as ações que contribuam para a manutenção e valorização da biodiversidade e para a conservação da diversidade genética agrícola.
Protocolo de gestão
Nuno Teixeira foi assistindo ao crescimento do parque e a associação Celtiberus esteve sempre envolvida neste crescimento, neste planeamento, nesta organização. O Carlos da Relva morreu em 2017 mas Nuno, que regressou para o acompanhar, já não tenciona sair do concelho. Agora quer ver o filho a crescer em Boticas e continua a ter muitos projectos para o Boticas Parque, projectos esses que a Celtiberus desenha em parceria com a câmara municipal, proprietária dos terrenos (que recebeu em 2011 por cedência do Ministério da Agricultura, ou que expropriou).
Percebemos que era a melhor forma de podermos fazer o trabalho que pretendíamos. Achamos que era mais ágil criar uma associação, em vez da gestão ficar integrada na câmara municipal, sempre mais formal por causa dos procedimentos impostos à administração pública. Assim, temos um protocolo de animação do espaço que é bom para todos”, explica Nuno.
O protocolo assinado entre a Celtiberus e a Câmara Municipal engloba o funcionamento do parque, ou seja, ter a recepção aberta, organizar a venda ao público do viveiro de trutas-fário (uma espécie endémica em Boticas), zelar pela manutenção do espaço (fazer a limpeza, tratar da recolha de lixos), fazer educação ambiental acompanhando visitas de escolas, monitorizar o espaço, a identificar as espécies, desenhar os percursos interpretativos, e organizar actividades mais ou menos permanentes, como o arborismo ou a canoagem, ou calendarizadas, como trilhos e caminhadas temáticas.
Nuno Teixeira diz que há actividades o ano todo – aliás, só não as programa para os meses de Verão, que aí a afluência é permanente e garantida, mesmo que o parque não tenha, como gostaria, uma praia fluvial para usufruto dos visitantes. E o sucesso tem sido visível.
O protocolo permite à Associação pagar salários, ter estabilidade e uma programação consistente. O passar dos anos e a qualidade das iniciativas fizeram o resto. “Na primeira caminhada que fizemos tivemos 30 pessoas. Agora temos de limitar as inscrições às 300, porque os interessados são muito mais e nós queremos que seja uma boa experiência para todos”, argumenta o director do parque. Só no verão é que nem se preocupam em organizar nada, que o parque está naturalmente cheio.
Fernando Queiroga, presidente da Câmara Municipal de Boticas, diz que o objetivo do projeto foi criar uma espécie de porta de entrada às várias potencialidades e capacidades turísticas que o concelho tem. “Como eu costumo dizer, é um equipamento que serve toda a gente, dos 8 aos 80, todos se podem sentir bem aqui.” O Boticas Parque rapidamente se tornou muito mais do que o parque de merendas que a população ali criou para usufruir da magnífica mancha verde – “Já era tradição mesmo na minha juventude. Vinha para aqui com os meus pais fazer as nossas merendas, fundamentalmente aos domingos à tarde. Agora continuamos com essa tradição, mas temos também a oferta de todo um leque de actividades, que serve não apenas os residentes no concelho”, argumenta Queiroga.
Parque para todos
Sara Amendoeira comprova que as palavras de Queiroga não são ditas em vão. Tem 32 anos e um filho de seis. É nascida e criada em Setúbal, é antiga emigrante na Suíça e residente em Chaves. Está, a uma quarta feira de Julho, num dia de folga, a passear com Lucien no Parque de Boticas. Trouxe uma amiga francesa, que ainda conhece mal, mas que tem, como ela, filhos numa escola primária de Chaves. O pai de Lucien continua na Suíça a trabalhar para ganhar dinheiro. A amiga francesa veio com o marido português procurar emprego em Portugal. E ambas tiveram um factor a nortear-lhes a decisão: terem tempo para estar com os filhos, não precisarem de ter dois empregos e dois salários para conseguir pagar as contas, que passaram a incluir pagar a alguém para estar com eles. “Olhei para o mapa de Portugal e pensei que no Norte seria mais fácil arranjar um emprego. Sempre ouvi falar de Chaves como uma cidade tranquila, e já confirmei que sim. Tenho aqui tudo o que preciso”, diz Sara.
E tudo o que precisa passa, também, por ter infra-estruturas como o parque de Boticas, onde o filho Lucien pode gastar energia a trepar árvores e fazer muitas descobertas na natureza. “É, francamente, um lugar bonito para vir passear. Já é a terceira vez que cá venho. E acho que vou voltar muitas mais vezes. Afinal, demoro menos de meia hora a chegar aqui”, argumenta.
Manuel Cruzeiro e a mulher, Eugénia Gomes, são de ainda mais perto. Vivem na aldeia de Valdegas e há muito que estão reformados. Depois de uma passagem, breve, por New Bedford, nos Estados Unidos, cedo perceberam que eram mais felizes em Boticas, a tratar dos campos e do gado. Uma decisão que tomaram muito antes daquela paisagem que ajudam a construir, com as suas práticas e o seu labor, se tornar Património Agrícola Mundial, em Abril de 2018. Manuel e Eugénia já tiveram mais animais do que têm agora – “que a idade pesa e o corpo não deixa”, explica Manuel, com os seus 80 anos. Mas há tradições que não deixam cair. A de ir buscar umas trutas, para comer com uma cebolada, por exemplo. Manuel nunca as pescou no rio – “não tinha muita habilidade” – mas tornou-se tradição ir buscá-las ao viveiro dos Boticas Parque. E na mesma tarde de Julho, em que Sara brincava com Lucien, Manuel e Eugénia foram “esticar as pernas e buscar o jantar”. E Nuno, esse, preparava-se para receber um grupo grande que tinha telefonado a perguntar se conseguiam fazer o percurso de arborismo. “Temos tudo tratado”, confirmou junto dos outros dois membros da associação que estão naquele dia a trabalhar no parque e que tentam responder à azáfama que tomou conta da pequena esplanada que existe no parque e que é um aprazível ponto de encontro no verão.
A taxa de frequência é “excelente”. “Nada melhor do que as pessoas passarem, observarem, verem como é o nosso modo de vida, o que ainda continuamos a preservar. O Parque de Natureza e a Biodiversidade é mesmo isso”, sintetiza Fernando Queiroga.
Puxar pelo concelho e pelo país
O presidente da Câmara de Boticas não disfarça a satisfação por ver o sucesso que tem este equipamento no concelho. “É daquele tipo de investimento que puxa por todo o concelho. Mais visitantes significa mais gente nos restaurantes, mais gente nos estabelecimentos de hotelaria, mais gente a visitar as nossas aldeias, a comprar e a experimentar os nossos produtos endógenos”, argumenta o autarca.
Sem falsas modéstias, Fernando Queiroga afirma que este investimento poderia ser apontado como exemplo de como o financiamento comunitário contribui positivamente para a valorização dos territórios. “Não precisamos de investimentos megalómanos. Precisamos de preservar o que temos, e procurar trazer valorização ao nosso concelho. Portanto este é um bom exemplo de que estou satisfeitíssimo como responsável político e gestor de dinheiros públicos. Pelos visitantes que trouxe, pela satisfação e orgulho que dá a quem é do concelho por ter um equipamento desta qualidade em Boticas, mas também pelos bons exemplos que aqui conseguimos dar. Em termos de sustentabilidade, temos muito orgulho em dizer que este foi o primeiro local do concelho a produzir de forma biológica”, sublinha o autarca.
O Centro de Observação da Natureza – Boticas Parque é, pois, também o sítio onde se praticam e se ensinam as técnicas em prol da sustentabilidade – “porque sabemos que os recursos são finitos e é preciso ter cuidado”. “É preciso trazer as crianças a sítios como este, para que haja uma noção específica do que é a sustentabilidade, do que é a preservação do meio ambiente. Fazemos questão que aprendam aqui e levem essa mensagem para os colegas, para os familiares”.
Nuno Teixeira diz que quando ele e a equipa da Celtiberus agarraram este desafio – “eu dou a cara pela Associação, mas há uma equipa comigo, que aqui entrega tudo, o seu tempo e a sua paixão” – não tinham ideia até onde conseguiam ir. “Começamos apenas com as caminhadas em perspectiva, limpar os caminhos antigos, recuperar as levadas. Mas depois começamos a criar raízes e a ganhar asas – no fundo, começamos a criar atividades. Caminhadas no parque, caminhadas interpretativas, o trail, as visitas de educação ambiental”, enumera Nuno. Depois, foram juntando-se parceiros, como a AEPGA (Associação para o Estudo e Proteção do Gado Asinino) ou Parque do Vale do Côa, por exemplo, ou até mesmo a UTAD, no desenho dessas atividades. Entretanto, já passaram dez anos. “E nem demos por ela”, admite.
Agora, Nuno Teixeira que diz ter chegado a Boticas sem grandes ambições, já considera que a equipa que dirige é pequena para as dimensões que algumas actividades foram tomando. E assume que, em termos de realização profissional, sente que está no sítio certo para fazer o tipo de trabalho que gosta de fazer. “É daquelas coisas boas que às vezes a vida nos dá. A existência deste investimento permitiu-me regressar à minha terra, e permite que eu mostre de perto ao meu filho a casa e os caminhos onde pai, avô e bisavô andaram”. A Casa da Relva, enquanto casa do vigia florestal já não existe, mas os Relvinhas continuam a passear por lá.