Passadiços do Távora: caminhos para a mudança
Filipe Pinheiro nasceu e cresceu em Vila da Ponte, uma freguesia do concelho de Sernancelhe assim chamada por causa da ponte romana que ali existia na altura em que a vila recebeu foral. Vila da Ponte ainda é freguesia, mas perdeu o estatuto de vila. Aliás, hoje em dia é pouco mais do que uma aldeia, com cerca de 400 habitantes. Filipe nasceu em 1976 e tem memórias vívidas de como a aldeia se foi transformando para chegar ao dinamismo que tem hoje em dia. Dinamismo que, admite o agora presidente da Junta de Freguesia, “nem nos melhores sonhos se tinha atrevido a imaginar”.
Filipe Pinheiro fala sobretudo do dinamismo económico e social que a construção dos chamados Passadiços do Távora, inaugurados em 2021, trouxe à sua freguesia e ao seu concelho. Localizado num território de baixa densidade, perfeitamente enquadrado nos alvos definidos para intervenção das Estratégias de Eficiência Coletiva desenhadas no Programa de Valorização Económica dos Recursos Endógenos (Provere) do Douro, o investimento de cerca de 560 mil euros para construir estes passadiços mostrou-se certeiro.
“O projeto até nasceu com uma ideia nossa, na freguesia. Transmitimo-la ao presidente da Câmara de Sernancelhe, que logo abraçou a ideia. Pensámos na forma de aproveitar os investimentos que tinham sido feitos com a construção do açude, ou do dique, como nós o chamamos”, recorda Filipe.
A albufeira de Vilar propriamente dita foi inaugurada em 1965, ano em que desapareceu a ponte romana que tinha dado nome à freguesia. “Era o nosso ex-líbris. Não chegava a ficar inundada, mas a EDP invocou questões de segurança e preferiu retirá-la em vez de preservá-la. Foi o maior erro”, acusa o presidente da junta.
Foi só em 2005 que foram feitas as obras de construção de um açude com o objetivo de estabilizar o espelho de água, para permitir o aproveitamento lúdico. Desde então, seguiu-se um somatório de investimentos: o Largo de Festas e o Espaço de Jogos, o aproveitamento de uma antiga escola para criar o Centro Cultural e Desportos Náuticos do Rio Távora e uma ponte pedonal sobre o rio Ferreirim, que fora construída para substituir um acesso antigo que ligava duas aldeias, Vila da Ponte e Freixinho. “É que é uma ponte mesmo bonita. Todos os que têm oportunidade de lá passar ficam encantados”, explica Filipe Pinheiro, sem esconder o “orgulho” que sente de cada vez que ouve um elogio à ponte da sua terra, uma ponte que os fotógrafos que pululam nas redes sociais rapidamente tornaram “tendência”.
Só que havia a necessidade de mostrar mais essa ponte, que não estava ligada a nada e estava quase escondida de tudo. “Pensámos em construir uns passadiços que circundassem o rio até à ponte”, sumariza o autarca. E foi assim que surgiu uma das infraestruturas que se tornou emblemática.
No caderno de encargos que levou a obra a concurso público, a empreitada apontava a construção de “Ecovia entre o Caminho da Cheira e a ponte pedonal sobre a ribeira de Ferreirim”, a que se acresceu a aquisição de uma piscina flutuante e de um embarcadouro, para fruição da população e visitantes. Na prática, são três quilómetros de percurso, a maior parte dos quais para reabilitar caminhos rurais que já existiam, com um troço final a assumir a forma de passadiço de madeira na zona mais próxima da superfície da água.
Os investimentos, financiados pelo Portugal 2020 – Provere Douro, só ficaram concluídos em 2021, mas parece que estão ali desde sempre, tal a forma como a população os incluiu no quotidiano da vila. “Nem nos nossos melhores sonhos pensámos atingir o objetivo que hoje está no local. Tem sido uma procura fantástica”, diz Filipe Pinheiro.
O presidente da junta sabe do que fala, porque é a freguesia quem se responsabiliza pela manutenção e limpeza do espaço, e quem coordena o adequado funcionamento das instalações aquando da abertura da época balnear. E porque é ele também quem dirige o Núcleo Desportivo e Cultural de Vila da Ponte, a associação que dinamiza o centro náutico, que agora é também albergue de peregrinos do Caminho de Torres – um itinerário jacobeu que une Salamanca a Santiago de Compostela.
Por isso sabe, por exemplo, que nas duas primeiras épocas balneares passaram pela Albufeira de Vilar e pelas instalações recreativas de Vila da Ponte cerca de 60 mil pessoas. “São dados fiáveis, os nadadores-salvadores faziam a contagem diária, em dois turnos”. A percentagem de quantos são moradores e quantos são visitantes é mais difícil de saber com exatidão: a expectativa é que 85% a 90% destes sejam visitantes.
As instalações do Centro Náutico permitiram que na escola profissional fosse criado um curso de Desporto, com base na canoagem, com 90 horas letivas passadas no rio. E a escola profissional está também a preparar profissionais para o turismo capazes de responder ao crescimento da oferta e da procura, tanto no alojamento turístico como em muitas outras atividades.
Mudar de vida
Aqui há qualidade de vida, gosto muito das minhas férias de verão aqui. Aqui sempre há muitas coisas para fazer”, e não se refere só a mergulhos na albufeira e a caminhadas nos passadiços. Fala de lazer (há bares e discotecas), fala de atividades económicas (há novos restaurantes, vai haver oferta de alojamento local) e admite até, quem sabe, que um dia poderá vir a estabelecer-se profissionalmente em Sernancelhe. “Ainda é cedo para saber. O que já sei é que não vou ter saudades de me levantar às cinco da manhã para ir de Fernão Ferro para Lisboa”, termina.
Carlos Santos, presidente da Câmara de Sernancelhe, considera que o município está a recolher agora os frutos de uma estratégia desenhada há muitos anos, e que passou sempre pela aposta na qualidade da água, para que ela não servisse apenas para a produção elétrica — “este município investiu em saneamento básico primeiro, antes de pensar em estradas e rotundas”. Mas a estratégia ainda não está concluída. Os autarcas de Sernancelhe e Moimenta da Beira, que partilham a área de influência da albufeira de Vilar, e ainda o presidente da Câmara de Tabuaço desenharam em conjunto um plano mais ambicioso e que passa por criar atratividade ao longo de todo o vale do Távora, afluente do Douro.
Sernancelhe está a fazer a sua parte e agora tem um novo projeto para ligar os atuais passadiços do Távora até Freixinho, fazendo uma ligação ao observatório de aves (chamado de “aracnídeo”) que também já está construído, e um passadiço elevado para aceder a bungalows que serão construídos numa nova zona florestal, composta por árvores autóctones como sobreiros, medronheiros e carvalho. A expectativa é concessionar esta infraestrutura — como foi concessionado o Bar da Praia, que está a fazer muito sucesso na Vila da Ponte.
A construção dos passadiços do Távora foi, afinal, “a melhor coisa que fizeram na Vila da Ponte”, diz Lígia Vaz. “É um orgulho ver a nossa terra tão cheia de gente”, acrescenta Ana Quintela. Pedro Dias, na vizinha aldeia do Freixinho, também deixou o trabalho em França para continuar o trabalho que faz a mãe, doceira e padeira. Alcina Dias era a única habitante a fazer as Cavacas de Freixinho, um doce conventual cuja receita saltou os muros do antigo Convento de Nossa Senhora do Carmo, uma casa de recolhimento de noviças que desapareceu com a implantação da República. Alcina soube da receita pela sogra e temia que, entre os filhos, não houvesse quem as quisesse continuar. “Porque dá muito trabalho amassar e cozer”, afirma.
Mas Pedro, afinal, não teve medo da labuta. Deixou a construção civil e veio mexer “com outro tipo de massa”, brinca. E diz que a vida de padeiro lhe tem trazido boas surpresas. “As cavacas continuam a ser feitas pela minha mãe. Mas eu descobri que me dá muito gozo fazer pão e andar a distribuí-lo pelo concelho.”
Quando, em 2006, Pedro emigrou para Lyon, em França, não havia em Sernancelhe nada do que há hoje em dia. “Se estás em algum sítio a trabalhar por trabalhar, mais vale fazê-lo na tua terra.” E na sua terra, afinal, também havia oportunidades. “Deixei de trabalhar pedra e passei a trabalhar farinha, e descobri que até gosto mais”. Agora há mais procura pelos seus produtos — “o hotel pedia-me um pão por dia, agora pede-me dois ou três”. Há clientela para os produtos tradicionais, mas também para aqueles em que vai inovando, como uma bola de carne que mais parece uma pizza.
Carlos Santos está convencido de que os passadiços do Távora passaram a ser uma grande porta de entrada para o concelho, e que aumentaram as visitas aos vários atrativos e monumentos de Sernancelhe. Filipe Pinheiro tem a certeza de que os passadiços do Távora trouxeram uma nova vida à sua Vila da Ponte. “Antes não tínhamos uma única cama turística na Vila da Ponte. Agora já temos muitos investidores privados a trabalhar nisso. E os restaurantes também estão a aparecer. Os investimentos turísticos são importantes, os acontecimentos desportivos vieram atrás, e a população está a mudar o seu estilo de vida”, argumenta.