Os superpoderes do movimento Transformers
Diogo Silva teria uns 14 ou 15 anos, quando ouviu um beat a sair de uma sala num colégio da área metropolitana do Porto onde ele e o irmão, também menor de idade, estavam institucionalizados. Diogo quis ficar junto do irmão mais novo, protegê-lo, acompanhá-lo, depois de as autoridades terem definido que seria ali que o Estado os acolheria de circunstâncias familiares e sociais muito complexas. A música mexia com ele, percebeu então. Aquela não era a escola que frequentava, era a instituição onde vivia. Foi por causa desse som de música a sair de uma sala e pela perceção de que gostava muito de dançar que encontrou um rumo na vida, compreendeu depois.
Às sextas-feiras, Diogo Silva começou a sair desenfreado da escola onde frequentava o ensino secundário, no centro do Porto, e “voava” para não perder o comboio até Ermesinde, para assistir à aula de breakdance. “Gostava mesmo daquilo. Gostei muito da relação que estabelecia com a Orquídea, a minha mentora”, explica. Quando por volta dos 18 anos ganhou o primeiro torneio na modalidade é que percebeu que se tinha transformado. E hoje em dia, uma década depois, é ele quem está a dar aulas de breakdance a um grupo de crianças e jovens – entre os 10 e os 16 anos – numa sala do bairro de Santa Bárbara, em Fânzeres, Gondomar, onde funciona o projeto de intervenção comunitária Academia D’Ouro – E9G.
“Lembro-me sempre que já estive onde eles estão. Reconheço neles muito de mim, de quando também me sentia às vezes sem apoio. Então eu não quero ser aquele mentor que está lá só para lhe ensinar uns truques de dança, mas aquele que está lá para os inspirar a quererem ser melhores. Porque estar com os miúdos também me faz querer ser melhor todos os dias”, diz Diogo Silva, momentos antes de entrar na aula.
Mal atravessa a soleira da porta, Diogo é rapidamente ovacionado. A maior parte dos miúdos levanta-se. E as meninas, mais expeditas, tratam de encostar as mesas e cadeiras ao centro da sala, para que o chão fique livre e haja espaço defronte a um espelho onde, dentro de momentos, todos vão aprender a movimentar-se. Daniel Vieira, 10 anos, camisa do Futebol Clube do Porto vestida e cabelo “cortado à régua, como os jogadores de futebol”, denuncia a paixão pelo desporto-rei e pelo clube. Mas na hora seguinte a devoção vai ser entregue por completo ao breaking. Os músculos do seu pequeno corpo hão-de tocar todos na tijoleira fria do chão (“eu gostava que eles pudessem dançar em melhores condições”, diz Diogo, conformado).
No final da aula só se viam faces rosadas, sorrisos rasgados, endorfinas à solta. “Eu acho muito divertido ver o Diogo a fazer estas maluquices e eu também consigo fazer algumas”, diz Daniel. Maria Ribeiro, corpo franzino, 14 anos, sonho de ser veterinária, acabou a aula eleita “líder do grupo”. É a responsável por reunir os participantes na aula mais vezes, durante a semana. “Porque se treinarem mais vezes vão ver progressos mais rápidos. E aprendem mais depressa”, incentiva Diogo.
Participação cívica
Diogo foi um dos primeiros jovens do Porto a ser impactado pelo Movimento Transformers e pela Escola de Superpoderes. O projeto tem como principal objetivo capacitar crianças e jovens em risco, para serem agentes de mudança nas suas comunidades, através de diferentes talentos que aprendem. A ideia surgiu em 2010, em Lisboa, com a criação da Associação de Juventude Transformers, depois de uma apresentação pública no Fórum Económico Mundial de Davos. Mas foi em 2016, com a assinatura de um contrato público com a Área Metropolitana do Porto, no âmbito do Plano Integrado e Inovador de Combate ao Insucesso Escolar (PIICIE), inserido no Norte 2020, que o Movimento Transformers recebeu um dos impulsos mais definitivos. Porque lhe permitiu ter medições concretas do impacto que estes projetos de educação não formal têm no sucesso escolar dos jovens.
O protocolo assinado previa que cada um dos 17 municípios que compõem a Área Metropolitana do Porto identificasse o agrupamento com pior desempenho escolar do respetivo concelho. Esse agrupamento identificava a turma de 7º ano com pior desempenho escolar. E foi a essas turmas que os mentores da associação Transformers chegaram com um discurso direto e enxuto: “Vocês não gostam da escola, vocês têm más notas, mas agora vão ter a oportunidade de aprender o que quiserem”, recorda Joana Moreira, atual diretora da Associação, que participou activamente neste processo.
Os jovens quiseram hip-hop, breakdance, parkour, poesia, muitas atividades ligadas às artes e ao desporto. As aulas eram semanais. E os alunos começaram a gostar de ir para a escola, porque iam ter uma aula de que gostavam. Para além da frequência de uma atividade, cada turma deveria identificar um problema que os preocupasse na comunidade, para que todos juntos tentarem contribuir para a solução. Exemplo: na escola de Santo Tirso houve aulas de hip-hop e a preocupação dos jovens era com o abandono animal. A ação programada passou por organizar um espetáculo de hip-hop cujo bilhete de entrada era um quilo de ração.
O impacto deste projeto foi medido pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto e essa tem sido a métrica mais sólida para falar de resultados deste tipo de iniciativas. O estudo apontou para uma redução em 44,3% dos casos de insucesso escolar nas referidas turmas.
“Foi a primeira vez que tivemos um estudo de impacto tão robusto, em que avaliamos antes e depois do programa aos jovens e percebemos que eles melhoram a auto estima, melhoram a relação entre os pais, a relação com a escola. O dado mais relevante foi que pelo facto de estarem em horário escolar a fazer uma atividade que escolheram, eles melhoraram os seus resultados académicos”, diz Joana Moreira, actual directora da Associação Juvenil Transformers.
A metodologia proposta pelos Transformers na educação informal consolidava a sua credibilidade. “Nós já acreditávamos muito nos resultados. A partir daí, a nossa metodologia passou a ser sempre avaliada”, diz Joana. A metodologia alargou, passando a ser uma espécie de franchising social em qualquer município, instituição, organização ou empresa pode trabalhar com mentores voluntários que partilham os seus talentos com grupos de aprendizes que podem ser crianças e jovens em risco de exclusão social e insucesso escolar ou seniores isolados.
“Estamos a trabalhar em muitas frentes, sempre com o mesmo propósito. Para além de trabalhar com crianças e jovens em risco de exclusão, começámos a trabalhar com seniores, porque entendemos que também é uma população muito vulnerável”, diz Joana Moreira.
Surgiu, então, o programa Reformers. A lógica é a mesma. As juntas de freguesia sinalizam pessoas que moram sozinhas ou que não têm rede de suporte. E a associação também trabalha com lares e centros de dia, onde é perguntado aos utentes o que é que gostavam de ter aprendido e nunca tiveram possibilidade “Garantimos que estas pessoas podem aprender o que quiserem. Temos uma turma de ballet com alunas de 85 anos, temos grupos de dança, de natação, de patinagem, de kickboxing”, refere Joana Monteiro, enumerando atividades mais inesperadas, que se somam às mais expectáveis aulas de costura ou culinária.
O Reformers surgiu, por exemplo, no Centro Social da Sé Catedral do Porto em 2023, onde uma vez por semana havia aulas de culinária e costura. “Nós perguntamos sempre o que querem e às vezes é difícil arranjar consenso. Neste caso ficaram as duas aulas, que são ministradas de forma alternada a cada semana”, explica Carina Oliveira, gestora do Reformers. Mas, ao mesmo tempo que há essas aulas fixas, vão sendo experimentadas outras. Alice Silva já deu muitas aulas a jovens no Movimento Transformers. E esta será a segunda vez que vem ao Centro Social da Sé Catedral dar uma aula de kickboxing. Licenciada em Sociologia, apaixonada por desporto e técnica de exercício de reabilitação física no dia a dia, Alice Silva, 33 anos, é uma lufada de ar fresco a entrar pela sala adentro. Vai arrancar socos e gargalhadas àquele conjunto de mulheres que têm sonhos diferentes (“ver os meus netos todos casados”, diz Adelaide, de 86 anos, ou “manter o meu juízo”, diz Ermelinda de 76) mas que têm um objectivo comum: aproveitar bem o tempo que têm pela frente. “Ó Alice, tu tens de vir mais vezes!”, pede-lhe Patrocínio, de 79 anos. Carina Oliveira responde que é uma forte possibilidade.
Voluntariado
Joana Moreira diz que os Transformers irão estar sempre e apenas onde forem necessários e onde possam marcar a diferença. E esta certeza só é possível porque o Movimento Transformers tem a trabalhar consigo uma bolsa de cerca de uma centena voluntários. Os custos da associação são pagar as despesas, seguro de trabalho e organizar o funcionamento do projecto. Ou seja, fazer o recrutamento e capacitação desses voluntários e depois a avaliação e monitorização do impacto.
Alice Silva começou a trabalhar com os Transformers em 2014 e nunca mais parou. “O que me atraiu foi a ideia de trabalhar com jovens em contextos mais desfavorecidos, jovens que não têm oportunidades na comunidade – apesar de a comunidade até ser um foco de oportunidades, mas nem sempre vêem isso. Quis levar-lhes a minha paixão pelo desporto e despertar neles os valores mais básicos de civismo, de participação ativa na sociedade, de respeito pelo outro. Nunca mais deixei de ser mentora. Desde há um ano que dou aulas no projeto Reformers. Trabalhar com seniores também é o que eu faço no meu dia a dia. Porque não?”, provoca Alice.
A coach Alice, como se apresenta, já trabalhou para públicos de várias idades e proveniências, já esteve no exército, já trabalhou para empresas, tem um estúdio pessoal de reabilitação física. E diz que tem perfeita noção do impacto que a sua presença e o seu trabalho têm na vida destas pessoas. “As pessoas a lembrarem-se do meu nome, a quererem que eu volte, a sentirem-se mais felizes e mais ativas, a dizerem que hoje conseguiram levantar mais os braços. Poder conduzir a isso com o meu trabalho é espetacular. Por isso, tenho perfeita noção do impacto brutal que tenho na vida destas pessoas. E isso só me traz mais responsabilidades”, afirma.
E, avisa, há um impacto que não é medido em nenhuma métrica ou estudo, mas que é visível pela dinâmica das aulas. A relação que fica entre mentores e aprendizes, os laços que ficam para a vida. Alice continua a acompanhar a evolução dos seus aprendizes. Conta que, recebe chamadas deles quando passam de ano ou entraram na faculdade, se precisam de um conselho para uma qualquer situação, pessoal ou profissional. Essa é a principal recompensa de quem está a dar o seu tempo e o seu trabalho de forma voluntária.
Um outro bom indicador do sucesso do trabalho da associação passa pelo facto de quase um em cada quatro dos seus atuais voluntários terem sido antigos aprendizes da escola de superpoderes. Como é o caso do Diogo Silva, bboy, ou Cut, nome artístico. “O Cut é um dos melhores exemplos que prova que o trabalho que fazemos nos Transformers faz sentido. Muda vidas”, diz Joana Moreira, actual directora da Associação. Para além do pay-back, o devolver à sociedade aquilo que dela recebe, o que se pode perceber na história de Diogo é que o Movimento Transformers pode ser uma oportunidade e um trampolim para aqueles que, tal como ele, estão em franjas mais desfavorecidas e querem entrar no mercado de trabalho com o seu talento.
Por isso, um dos próximos passos da Associação Transformers, e meses depois de ter recebido no final de 2024 o prémio de Direitos Humanos atribuído pela Assembleia da República, é abrir em pleno centro da cidade do Porto a sua Academia de Rua. Mais do que a sede da associação, será um espaço físico com uma metodologia de intervenção associada, de preparação para a empregabilidade destes jovens. “Os miúdos aprenderam uma atividade connosco, de aprendizes passam a mentores voluntários, crescem, preparam-se para entrar no mercado de trabalho. Mas quase sempre enfrentam trabalhos precários ou desemprego, porque já estão em desvantagem, é muito difícil entrarem para empregos dignos”, lembra Joana Moreira.
Cut tem um plano, um projeto de vida: juntar dinheiro para conseguir passar um ano só a estudar a arte, a praticar. Aprender mais, aprender muito, ganhar troféus, ter uma escola. Quer chegar aos Jogos Olímpicos, onde a modalidade se estreou o ano passado, ou ao Red Bull BC One, a maior competição de breaking do mundo. Porque não?
“O breakdance pode salvar um miúdo”, diz. Um dia salvou-o a ele. “Eu digo aos miúdos que o breakdance me trouxe muita dor, muito trabalho, muita superação. Trouxe-me, sobretudo, muito compromisso. E se eu consegui, eles também conseguem”, argumenta. O breakdance, afinal, é um superpoder.